"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



terça-feira, 5 de julho de 2011

Rosalin



— Alô – disse Bosco esfregando olhos, tentando acordar. — Alô — repetiu, já pronto a colocar o fone de volta, quando uma voz respondeu do outro lado:
— Alô... Bosco? É o Ed.
— Poxa Ed! Tem idéia de que horas são?
— Bosco, você tinha razão. Eu nunca devia ter me metido com eles.
Algo na voz do amigo fez Bosco sentar-se na cama, bem mais desperto.
— Do que você está falando? Se metido com quem?
— Os Thompson.
— Cara, eu não tô entendendo nada. Aconteceu alguma coisa?
— Vieram me buscar, eu sei... Está lá fora desde que anoiteceu.
— Ed — começou Bosco, tentando manter a calma — Você andou bebendo? Quem está lá fora?
— Rosalin.
Então a ligação caiu.  
Bosco levantou-se com um misto de raiva e preocupação. Não era a primeira vez que Edward o acordava no meio da noite, mas havia algo mais naquele telefonema. Era medo; Ed parecia genuinamente assustado. Tentou retornar a ligação, mas tudo que conseguiu foi ouvir a voz esganiçada do amigo na caixa de mensagens.
— Ah, que se dane! — resmungou, voltando para cama. Ed era mestre em incomodá-lo; provavelmente estava bêbado e sequer se lembraria da ligação no dia seguinte. No entanto, Bosco não conseguiu voltar a dormir. Tinha a sensação de que aquilo não se tratava de uma simples molecagem do amigo; sentia que alguma coisa havia acontecido.
Olhou para o relógio sobre a cabeceira e viu que já eram 4:30h da manhã. Se pegasse o carro, chegaria à casa de Edward quando o dia estivesse amanhecendo. Isso é loucura, pensava enquanto se vestia. Droga, Ed! Se eu encontrá-lo dormindo numa poça de vômito, vou esfregar sua cara nela..
Dirigiu pela rua vazia e pegou a rodovia em direção à costa. Edward se mudara, há menos de um mês, para uma pequena cidade litorânea. Ele era escritor, assim como Bosco, e estava trabalhando em um livro sobre certa rica família da região: os Thompson.
Bosco chegou a pensar que, quando pegasse a estrada, perceberia que estava sendo estúpido e daria meia volta para casa, mas não o fez. Na verdade, a idéia de que alguma coisa acontecera a Ed se tornara ainda mais forte. Tentou lembrar-se da conversa com o amigo. Havia algo sobre se meter com os Thompson... Alguém tinha ido buscá-lo... Rosalin. Quem seria a tal Rosalin? Talvez um membro da família em questão, descontente com a história que o autor vinha escrevendo. Edward tinha um talento especial para desagradar as pessoas, cavando profundo demais a intimidade delas .
Já era dia quando Bosco chegou ao casarão a beira mar.  O lugar  pertencera a Paul Thompson, o patriarca do clã, e fora emprestada a Ed. Cruzou o jardim, pensando no que esperava encontrar lá dentro. Talvez Edward estivesse mesmo somente bêbado e dormindo, talvez tivesse sido apresentado ao advogado da família Thompson ou... Um pensamento passou por sua cabeça como um flash: Talvez ele esteja morto.
A porta da frente estava aberta e ele a empurrou lentamente. Lá dentro tudo estava em silêncio.
— Ed! — chamou, já entrando na sala. Tudo continuou quieto. Bosco estava admirado com a beleza do lugar.
—Filho da mãe! E a sua desculpa era a pesquisa, né? —  murmurou, aproximando-se da enorme parede de vidro, que permitia a visão do mar.
Ele vasculhou a casa chamando por Edward. E embora não o houvesse encontrado, sentiu-se tranqüilo por não haver qualquer sinal de violência; tudo estava na mais perfeita ordem. Talvez Ed nem estivesse em casa quando telefonou para ele. De qualquer forma, Bosco estava decidido a esperá-lo. Queria conversar sobre como ia o livro e saber quem era Rosalin.
Ele estava na cozinha, servindo-se de um copo de leite, quando notou uma curta escada que dava acesso a um corredor semi-oculto. No final do mesmo, havia uma porta. Ele a abriu e entrou num cômodo vasto que parecia ser um escritório. Uma enorme janela na parede oeste tinha vista para o mar. Do outro lado da sala, havia uma escrivaninha com um notebook e, na parede atrás dela, um enorme quadro exibia a exata visão que se tinha ao olhar pela janela, exceto que, na pintura, um belo veleiro branco navegava à distância. Nem sinal de Ed ali também.
Levantou a tela do notebook e o ligou. O último acesso havia sido a um e-mail recebido por Ed e dizia:

Caro Ed.
Seguem, em anexo, cópias dos documentos que me pediu. Foi difícil pacas consegui-los e, você sabe, foi daquele “jeitinho”, então cuidado ao divulgar. A primeira esposa é uma espécie de assunto velado na família; vê se não se aprofunda muito nisso.
Sobre Rosalin, não consegui nenhuma informação.
Qualquer coisa, me ligue.
Um abraço.
           Nick

Anexados à mensagem havia três documentos intitulados Prontuário Médico, Casamento e Divórcio.
Bosco percebeu que Ed novamente estava indo fundo demais, mas, àquela altura, a curiosidade já começara a mordê-lo também. Abriu o documento Casamento e viu que se tratava da certidão de matrimônio de Paul Thompson e Roxanne Salem Linnus. O documento Divórcio trazia os papéis de separação do mesmo casal. A esposa entrara com o pedido dois anos após o casamento, mas o processo fora encerrado logo depois. O último arquivo era a ficha médica de Roxanne L. Thompson e trazia um histórico de lesões acidentais, um aborto espontâneo e episódios de depressão.
Na área de trabalho, Bosco encontrou uma pasta chamada Thompson e dentro dela uma série de artigos que contavam a trágica e misteriosa história da família. O primeiro deles era uma notícia de jornal, cuja manchete era A MALDIÇÃO DOS THOMPSON e falava sobre a bizarra morte de Margareth, esposa do magnata do petróleo, Paul Thompson. Absurdamente, ela havia morrido afogada na piscina rasa de sua casa. Margareth sofria de depressão e seus medicamentos teriam causado o desmaio que a levara à morte. Outra nota comentava que ela jamais se recuperara da perda prematura de seus dois filhos, David e Lindsey.
Havia uma dúzia de artigos sobre a morte dos dois jovens. David Luke Thompson mergulhara no mar, após perder o controle do carro e cair da ponte que atravessava a baía, na entrada da cidade. Já Lindsey Thompson fora encontrada morta na banheira, dez meses após o acidente com seu irmão.
Uma das matérias fazia menção sobre a desafortunada trajetória familiar: a perda dos dois filhos em menos de um ano e a morte da primeira esposa de Paul. Bosco recostou-se na cadeira pensativo. Roxanne não seguira com o divórcio, pois havia morrido.
Havia uma série de reportagens sobre uma suposta maldição, que assombrava os Thompson desde a trágica morte de Rox. Então, Bosco abriu um arquivo que trazia, logo no início, uma grande foto de Paul, sorrindo em um veleiro branco. Abaixo letras garrafais diziam: “PAUL THOMPSON SUCUMBE À MALDIÇÃO. Bosco observou a foto com atenção e depois se virou para olhar o quadro atrás de si. Com certeza se tratava do mesmo barco: os três mastros com velas brancas, a mesma faixa azul circundando o casco. Paul desaparecera em alto mar, quando velejava sozinho e jamais fora encontrado.
O último documento era a cópia de uma página antiga de jornal e falava sobre Roxanne. Era uma notícia bastante superficial, dizia apenas que ela sofrera um acidente, enquanto velejava com o marido, e que caíra no mar, morrendo afogada. Havia um breve relato sobre seu histórico de depressão e um desabafo de seu marido, Paul: “Rox adorava o mar. Quando compramos nosso barco, fiz questão de batizá-lo com suas iniciais. Velejar era uma das poucas coisas que a fazia feliz ultimamente”. Logo abaixo, uma foto, um tanto desbotada, exibia o jovem casal diante de um veleiro branco. Bosco sentiu um gosto amargo subir pela garganta. Próximas à popa, letras rebuscadas desenhavam o nome da embarcação: Rosalin.
Bosco começou a abrir os arquivos do computador, à procura do livro em que Edward estava trabalhando. Naquele momento, já se esquecera completamente do motivo que o trouxera até ali. Estava totalmente absorto com a história daquela família, que parecia realmente amaldiçoada.
A leitura do texto revelou uma versão ainda mais sinistra da saga dos Thompson. Ele levantava suspeitas sobre os acidentes sofridos por Roxanne e sobre sua morte. Não apenas insinuava que Paul seria o responsável pelo desaparecimento da esposa, como também apresentava os motivos: a comunhão de bens e o pedido de divórcio. Edward ironizava que, se algo amaldiçoava os Thompson, provavelmente seria o fantasma de Rox.
Bosco só se deu conta de que o dia havia passado, quando a luz alaranjada do crepúsculo começou a enfraquecer. Pela janela, ele pôde ver os últimos raios do sol mergulhando no mar e o contorno negro de um barco ancorado próximo a praia. Levantou-se preocupado, pensando que devia ligar para a polícia, afinal Ed estava desaparecido há um dia inteiro. Porém, quando contornou a escrivaninha, sentiu seu coração disparar. O quadro, que ficara às suas costas, havia mudado. A visão do mar continuava a mesma, mas o veleiro branco era agora negro com velas rotas que pendiam de seus três mastros e, em seu convés, estavam as sombras de cinco pessoas.
— Os Thompson —  murmurou Bosco, apertando o peito.
Saiu tropeçando do escritório. O pânico fazia suas pernas pesadas. Quando chegou à sala, a última luz do dia se apagava, mas a visão do barco, através da parede envidraçada, foi nítida. O veleiro era uma versão aterrorizante da embarcação que fora outrora, exatamente como Bosco vira no quadro minutos antes. Rosalin havia voltado. Era certo de que vinha buscar alguém. No seu íntimo, Bosco sabia, assim como Ed também soubera. Os segredos eram a verdadeira maldição dos Thompson.

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