"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



domingo, 23 de outubro de 2011

E o que me incomoda?

   Parei, por um instante, de escovar os dentes para poder ouvi-los melhor e suspirei, desanimada, ao identificar os gritos já conhecidos.  Pensei se caberia a mim, mais uma vez, por fim àquilo e lancei, irritada, a escova de dentes dentro da pia. Sentei-me na cama por um momento, ponderando se devia ou não pegar o telefone. E de que adiantaria? Nada mudara nas últimas vezes. 
  Foi o pranto da filha mais velha que me deu a certeza de que finalmente havia acabado. Ninguém iria parar na Emergência; a ambulância não viria dessa vez. Ele não seria liberado no dia seguinte, como acontecera outras vezes. Certamente ficaríamos um tempo sem vê-lo. Se ao menos o tivessem levado antes, talvez não houvesse um fantasma na casa ao lado.
   Enfim, ela descansa... e eu descanso  também. Não há mais gritos, nem ligações para a polícia e as crianças já não choram. Pensei em me mudar, mas, que droga! Por que isso faria sentido agora? Se pude conviver por tanto tempo com o fato de morar ao lado de um monstro assassino, por que me incomodaria uma assombração na casa vizinha?

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Carta a Hitler


Texto escrito para o Desafio de Escritores, cuja tarefa consistia em escrever uma carta a Hitler, do ponto de vista do final do século XX, considerando que ele vivesse, nessa época, em Bariloche.

Adolf, 
   Esta carta vem pôr um ponto final em nossa relação; estou te deixando. Cansei-me de teus resmungos de frustração, de tua arrogância injustificada e de tua frieza. Não suporto mais ouvir-te suspirar “Se eles...”, “Se não fosse...”, “Se tivessem...”... Basta! Já que não admites que arruinaste a ti e ao teu país, assume ao menos que destruíste minha vida. 
   Há dias, venho pensando na história de outra Eva, a daqui. Sua vida será retratada em um filme. Sobre mim, jamais farão um filme. Culpa minha e culpa tua. Sempre que falam de mim, descrevem-me como uma mulher inexpressiva, vazia e até obtusa. Mas a verdade, e talvez nem tu o saibas, é que não sou nada disso. Ao contrário do que possas pensar, Adolf, sou bastante inteligente, porém tive que me rebaixar muito para estar a tua altura. Anulei-me para estar ao teu lado, primeiro, por deslumbramento adolescente, depois, por amor, e, por fim, por conformismo.
   Entendi, há tempos, que não te limitaste a perseguir os que não te compreendiam, mas calaste também os que enxergavam tua mediocridade. Tive medo de que visses, através de mim, tuas fraquezas. Calei-me e igualei minha covardia à tua. Mas o que devo temer agora? Um velho amargo que perdeu a máscara de superioridade e que passa os dias a praguejar?
   E eu que pensei que te casaste comigo, às vésperas de nossa fuga, porque não me querias perder. Grande ilusão! Tu não querias era estar só em teu fracasso. Arrastaste-me para o exílio apenas por medo da solidão. Eis que farsa foi nosso casamento e que arremedo de marido tu me foste. Digo-te que, em todos esses anos que aqui vivemos, nunca fui feliz.
   Espero que possas, ainda que uma única vez antes de morrer, encarar o mal que fizeste. Tua nação tem vergonha de ti e teu povo ficou marcado por conta das atrocidades que cometeste. Enxerga, homem, tua pequenez. Desce desse pedestal de mentiras onde te instalaste. Que grande estadista foste, se sequer podes sair à rua e dizer aos outros quem és? Se te julgas mesmo tão superior a essas pessoas, que com desprezo chamas de “gente de fala enrolada”, por que não alardeias teus feitos diante delas? Covarde é o que sempre foste! Este povo te cuspiria na cara se te conhecesse.
   Enfim, não posso mais te suportar. Azedas e infectas tudo ao teu redor; preciso limpar-me de ti. Não te preocupes, não tenho qualquer intenção de entregar teu paradeiro; lembro-me de teu pânico, quando descobriram Mengele no Brasil.
   Deixo Bariloche, mas não a Argentina; gosto daqui. Não estou fugindo de ti e sequer pedirei que não me procures, pois sei que, em tua inércia, és incapaz de buscar o que quer que seja.
   Fica e reina no império que conquistaste.

             Eva Braun