"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



segunda-feira, 29 de maio de 2023

O que havia




Havia uma tristeza.

Pairada etérea no ar

E em tudo depositada

Como fina poeira em camada.

Que as cores desbotava

Azedava todo sabor

Tornava amargo cada gole

Qualquer canção silenciava.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Apneia

Google Imagens


Não foi teu fogo,
Ou tuas unhas a rasgar minha pele,
Nem o trovão de tua voz em meus ouvidos.
Eu precisava respirar.
Um fôlego apenas.
Um instante, e não estavas mais lá.
Já esperava a partida, nunca desejei o retorno.

Mas agora que teus passos voltam a ecoar pela casa,
Sinto as mariposas baterem contra o frágil vidro em meu peito.
Não esperaste convite, tens a chave da rua,... da sala,... do quarto,
Dos armário onde tentamos esconder nossos trastes empoeirados.
Onde me encontraste, afinal?

Já que estais, fica.
Só não me tomes pela mão, nem me toques com o olhar.
Não tentemos ser o que jamais fomos.
Ofereço-te a mesma valsa.
Aprendi a dançar sobre os cacos que deixas espalhados no chão.
Corta mais fundo, eu me encarrego de esconder as cicatrizes.
Só sangra em mim e deixa que eu lide com a bagunça.

Pensas que esqueci de que és dor ou morte?
Não.
Mas me ensinaste a decidir depressa.
Já não pondero.
Eis-me, então, agarrada a ti como nunca.
Tal qual náufrago em desespero, arrasto nós dois para o fundo.
Sem pausa para fôlego.
Estaremos mortos antes que eu precise respirar de novo.
Nenhum de nós virá à tona.
Nenhum de nós vai embora.
Desta vez, ninguém há de viver/morrer sozinho.

terça-feira, 17 de abril de 2018

É claro



̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe, um sujeitinho nervoso que tinha por hábito berrar com os membros de sua equipe.
Lia encarou-o por um segundo, levantou-se lentamente e, sobre o salto, elevou-se cerca de vinte centímetros acima do chefe. Em um só movimento, varreu a mesa com as mãos, lançando ao chão o computador, pilhas de papel, caneteiro, porta retratos e tudo mais que se acumulava ali.
̶  Foda-se  ̶  foi sua única resposta antes de apanhar a bolsa e sair ecoando por entre as mesas, sob olhares perplexos dos colegas.


̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe.
̶  Pois sente a sua bunda gorda na cadeira e faça você mesmo  ̶  respondeu Lia, sem desviar o olhar da tela do computador.
O homenzinho arregalou os olhos e, espiando nervosamente ao redor, gaguejou:
̶  O... o... o que disse?
Ela o encarou e sorriu; não o sorriso cálido e afável costumeiro dela, mas um esgar de dentes, quase um rosnado.
̶  É o que você ouviu, seu merda. Se quer a porra do trabalho feito até amanhã, sente-se e faça  ̶  disse, levantando-se e apontando a cadeira para o chefe.
Apanhou a bolsa e saiu. Seus passos ecoavam entre os sussurros dos colegas.


̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe.
Sem responder, Lia levou a mão ao caneteiro e pôs-se a avaliar cada caneta guardada ali.
̶  Você me ouviu, Lia?  ̶  berrou num tom mais alto o homenzinho, vermelho de irritação.
Ela o encarou, e algo em seus olhos o fez recuar dois passos. Não era o olhar complacente tão próprio dela, mas um olhar furioso, cheio de ira.
Num gesto rápido ela se pôs de pé, agarrou o chefe numa gravata e cravou repetidamente a caneta na carne flácida de sua papada. Sangue jorrava da garganta e escorria da boca gorgolejante do homem, que lutava sem sucesso, tentando se libertar.
Ela ria o tempo todo. Ria quando quebrou uma das unhas cravadas no couro cabeludo do chefe. Ria quando a caneta prendeu-se no pescoço do homem. Ria enquanto apanhava a bolsa. Ria quando afastou-se da cena de caos, em meio aos gritos dos colegas. Ela ria.


̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe.
Lia ajeitou-se na cadeira, encarando-o com seu olhar complacente. A resposta veio acompanhada do velho sorriso afável:
̶  É claro.

O nó na garganta cresceu, o aperto no peito aumentou. Todos os demônios cochilavam naquela manhã, mas não ficariam assim para sempre...

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O Segredo do Sete



Eles dividiam um vinho, como era habitual, quando o assunto surgiu:

– Você viu que foi desafiada hoje? – perguntou o marido em tom de provocação.

– Vi – ela respondeu, fingindo indiferença – Escrever um texto sobre nossos ciclos de sete anos.

– Coincidência interessante essa, né? Nunca havia parado para pensar; a gente se conhecia há sete anos quando começamos a namorar, sete anos depois, nos casamos e por aí vai...

– É interessante, sim. Quanto à coincidência, não tenho certeza – a esposa levou a taça aos lábios e, antes que o marido a questionasse, emendou – Estive pensando a respeito e acho que já tenho o esboço de uma história. Quer ouvir?

– Claro – ele respondeu, recostando-se.

– Começa no colégio. Ela seria uma garota esquisita, que cresceu os olhos para cima do bonitão da escola. Só que, claro, ela é invisível para ele. Mas uma das vantagens de ser estranha é que você conhece coisas estranhas. E entre o monte de esquisitice que ela sabe há uma mandinga, uma amarração que lhe parece promissora. O feitiço do Sete.

O marido remexeu-se no sofá.

– Do Sete – repetiu ele – Por que do Sete?

– Ora, você não sabe o significado do Sete? – a esposa lançou-lhe um olhar de falsa surpresa – O sete é considerado um número perfeito. Ele é muito presente em várias crenças. Está relacionado a ciclos completos, perfeitos – e sorrindo, completou – como os nossos.

– Não sei se entendi bem, mas enfim...

– Olha só, são vários os exemplos: os ciclos lunares divididos em fases de sete dias, as sete cores que compõem a luz branca, sete dias da criação do mundo, o som formado por sete notas musicais... O sete dá ideia de completude, de ciclo e recomeço. Também tem o lado obscuro da coisa: os sete pecados capitais, o dragão de sete cabeças, os sete selos do livro no Apocalipse... – ela percebeu que o marido a olhava estupefato e concluiu – Enfim, o sete é um número bem poderoso.

– E você sabe de tudo isso... por quê? – ele perguntou, depositando a taça ainda pela metade na mesa de centro.

A esposa pareceu subitamente sem graça.

– Ah, sei lá – ela respondeu sem encará-lo – Achei que você soubesse também. Devo ter lido por aí. Você sabe, adoro uma curiosidade inútil. Vai querer ouvir o resto da história? – perguntou, devolvendo-lhe a taça e servindo-os de mais vinho.

Ele assentiu com um gesto, e a esposa prosseguiu:

– Então ela junta sete componentes em um amuleto, que deve ser velado por sete luas e que é mantido junto dela todas as noites. Assim ela consegue um contrato de sete ciclos, nos quais ele será dela e nada poderá romper seu relacionamento. É mais ou menos por aí... O que achou?

– Não. Não. Espere um pouco. Foi muito rápido – o marido sentou-se ereto, atento, genuinamente interessado – O que são os sete componentes? Como assim “sete ciclos”?

– Sete ciclos completos de sete anos, mais ou menos quarenta e nove anos – ela tomou um longo gole e prosseguiu – Quanto aos componentes, posso descrevê-los quando escrever a história. Seriam coisas que significassem algo durante os ciclos: uma pena de pássaro, uma flor desidratada, uma asa de borboleta... teria também coisas menos fofas, afinal a vida não é sempre bonitinha. Um chocalho de serpente, um casulo de mariposa. E, óbvio, algo que pertencesse a cada um deles.

Ele a olhava com um misto de choque e incredulidade.

– E o que acontece quando o período de sete ciclos acabar? – perguntou em tom temeroso.

Ela deu de ombros.

– Não sei, mas acho que ela dará um jeito. Tenho certeza de que já andaria procurando uma solução para isso, embora ainda não estivesse muito preocupada, afinal, faltaria muito para que o prazo se esgotasse.

Ele ficou em silêncio, contemplando o rosto calmo da esposa. Então, explodiu numa risada nervosa.

– Meu bem, você sabe mesmo bolar umas tramas sinistras! Credo, imagine o cara achando que está levando uma vida bacana, quando foi preso por um feitiço a uma pessoa possivelmente louca.

Ela sorria, e algo naquele sorriso fez o coração do marido gelar.

– Você achou sinistro? Ah, para ser sincera, acho que há algo de romântico na história. E se ele acha que a vida deles é bacana, de repente ninguém está perdendo nada. Por que seria errado, então?

Ele a encarou seriamente.

– Porque ele foi enganado... Porque lhe foi tirada qualquer escolha.

– E que escolha ela teria? – ela respondeu ainda sorrindo.



Naquela noite, o sono do marido foi agitado. Em sonhos, ele se via preso entre restos de animais, e tudo ao redor fedia a rosas murchas.

Acordou sentindo-se sufocado. A esposa ao seu lado dormia tranquilamente.

Levantou-se tonto e tropeçou até o banheiro. Seu rosto pálido, no espelho, tinha aparência envelhecida e cansada. Foi perdido entre fragmentos de lembranças e devaneios do sonho que a revelação o atingiu.

...e é mantido junto dela todas as noites.

Pé-ante-pé, retomou seu lugar na cama, e cautelosamente pôs-se a esmiuçar o travesseiro da esposa. Quando fechou os dedos ao redor do objeto, soube o que era sem precisar vê-lo.

A mulher já não dormia, mas fitava-o com olhos profundos e exibia um sorriso que era, ao mesmo tempo, frio e exagerado.

– Para falar a verdade – ela sussurrou – acho a história toda muito romântica.


quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Meus pensamentos?



No ano de 2147, diante da grave crise ambiental e do iminente colapso da humanidade, um conselho mundial, constituído por grandes líderes e cientistas, aprovou a implantação do chamado Projeto Íris.
O projeto tinha como objetivo a criação de um software avançado que pudesse avaliar riscos e traçar diretrizes para as ações humanas, de modo a garantir a preservação não só do planeta como do próprio homem.
Com o tempo, Íris ou a Máquina, como era conhecida, apresentou tão bons resultados e ganhou tal importância, que deixou de apenas sugerir e passou a tomar decisões por seus criadores.
Em 2191, a Máquina assumiu o controle sobre o próprio funcionamento, mantendo como principal diretriz o bem estar dos seres humanos e a constituição de uma sociedade global que garantisse a felicidade para TODOS.


Cidade de Cluj-Napoca, Romênia, 2233.


Eu poderia matá-lo agora. Poderia? A Máquina já vai acordá-lo. O relógio... Que horas são?

Bom dia, Ioana.
Bom dia, Cosmin.