"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



terça-feira, 17 de abril de 2018

É claro



̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe, um sujeitinho nervoso que tinha por hábito berrar com os membros de sua equipe.
Lia encarou-o por um segundo, levantou-se lentamente e, sobre o salto, elevou-se cerca de vinte centímetros acima do chefe. Em um só movimento, varreu a mesa com as mãos, lançando ao chão o computador, pilhas de papel, caneteiro, porta retratos e tudo mais que se acumulava ali.
̶  Foda-se  ̶  foi sua única resposta antes de apanhar a bolsa e sair ecoando por entre as mesas, sob olhares perplexos dos colegas.


̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe.
̶  Pois sente a sua bunda gorda na cadeira e faça você mesmo  ̶  respondeu Lia, sem desviar o olhar da tela do computador.
O homenzinho arregalou os olhos e, espiando nervosamente ao redor, gaguejou:
̶  O... o... o que disse?
Ela o encarou e sorriu; não o sorriso cálido e afável costumeiro dela, mas um esgar de dentes, quase um rosnado.
̶  É o que você ouviu, seu merda. Se quer a porra do trabalho feito até amanhã, sente-se e faça  ̶  disse, levantando-se e apontando a cadeira para o chefe.
Apanhou a bolsa e saiu. Seus passos ecoavam entre os sussurros dos colegas.


̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe.
Sem responder, Lia levou a mão ao caneteiro e pôs-se a avaliar cada caneta guardada ali.
̶  Você me ouviu, Lia?  ̶  berrou num tom mais alto o homenzinho, vermelho de irritação.
Ela o encarou, e algo em seus olhos o fez recuar dois passos. Não era o olhar complacente tão próprio dela, mas um olhar furioso, cheio de ira.
Num gesto rápido ela se pôs de pé, agarrou o chefe numa gravata e cravou repetidamente a caneta na carne flácida de sua papada. Sangue jorrava da garganta e escorria da boca gorgolejante do homem, que lutava sem sucesso, tentando se libertar.
Ela ria o tempo todo. Ria quando quebrou uma das unhas cravadas no couro cabeludo do chefe. Ria quando a caneta prendeu-se no pescoço do homem. Ria enquanto apanhava a bolsa. Ria quando afastou-se da cena de caos, em meio aos gritos dos colegas. Ela ria.


̶  O prazo é amanhã!  ̶  gritou o chefe.
Lia ajeitou-se na cadeira, encarando-o com seu olhar complacente. A resposta veio acompanhada do velho sorriso afável:
̶  É claro.

O nó na garganta cresceu, o aperto no peito aumentou. Todos os demônios cochilavam naquela manhã, mas não ficariam assim para sempre...