"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



sexta-feira, 29 de junho de 2012

Cumplicidade




— Mamãe, o monstro embaixo da minha cama não me deixa dormir.
A mãe sentou-se, esfregando os olhos. Era a terceira vez naquela noite e a quarta
noite consecutiva em que a menina vinha acordá-la por conta do monstro.
 — Meu bem, eu já olhei duas vezes, lembra? Não há nada lá.
 — Ele disse que vai embora quando comer alguma coisa — disse a filha, com olhar
suplicante.
 Vendo que não tinha escolha, a mãe afastou as cobertas e pôs-se em pé, sem
disfarçar a impaciência. Entrou no quarto da criança, silencioso como um túmulo,
acendeu a pequena luz da cabeceira e, antes que tivesse a chance de se abaixar,
uma mão grotesca, com garras retorcidas, agarrou seu tornozelo, arrastando-a para
debaixo da cama. Ela se debateu e lutou, enquanto uma dor lacerante subia-lhe
pelas pernas, alcançava seu ventre e depois o peito. Logo não houve mais luta e o
quarto ficou quieto novamente.
A menina, que observava tudo à distância, aproximou-se e subiu na cama.
 — Espero que agora você me deixe dormir — disse, apagando a luz. 

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Numa noite em Bucareste




Conheci Bucareste numa dessas viagens com amigos, logo após a faculdade, e devo confessar que, de inicio, não me impressionei com a cidade, que mais parecia recém saída da Segunda Guerra, tantos eram os monumentos ainda em ruínas. Estávamos conhecendo o leste europeu e três dias na capital romena me pareceram tempo demais. Teria sido tedioso, não fosse eu ter descoberto os encantos de Bucareste; melhor dizendo, os encantos de Anna.
Anna foi a razão de minha permanência prolongada na Romênia. Depois, tornou-se o motivo de minhas repetidas visitas ao país. Por fim, levou-me a fazer de Bucareste meu lar. Hoje, me seria impossível deixar esta cidade.
Casei-me com Anna e tivemos um filho. Sobre minha família o que posso dizer é que os amo infinitamente e que nada seria grande o suficiente para nos separar.
Foi ainda em minha primeira viagem à Europa, que tomei conhecimento de um tipo de turismo extravagante e muito praticado no velho continente, o turismo tumular. E o passeio consiste em exatamente isto: conhecer e admirar cemitérios. Realmente, a idéia não é muito atraente para todos, mas devo dizer que, hoje, minhas caminhadas noturnas por entre as lápides são quase sagradas. Ah, sim, se a intenção é a de encontrar espíritos, o melhor horário para um passeio nos cemitério é à noite, pois só almas terrivelmente atormentadas e perigosas se mostram durante o dia.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Simois e o Massacre de Timisoara

Existe uma antiga lenda romena, que fala de um trem de mortos que parte da Estação de Trens de Timisora levando almas para o Hades.




Simois caminhava de um lado para o outro no Pavilhão dos Mortos de Timisoara. Nunca, em mais de quarenta anos como encarregado responsável pela guarda das almas da Subseção 4, se encontrara em situação tão difícil e absurda. Conferiu mais uma vez o grande relógio da estação e se desesperou; em menos de meia hora o trem vindo do Hades chegaria e não havia nem sinal das tais almas desaparecidas.
Houve um tempo em que o trem partia diariamente do Mundo Inferior, para buscar os espíritos recém-desencarnados em Timisoara, mas, no pós-guerra, o fluxo de transportados caíra muito e, por ocasião da grande reforma administrativa promovida no Hades, em 1950, o novo Departamento de Logística determinou que os embarques seriam feitos apenas uma vez por semana. Construíram, então, um pavilhão sobrenatural, logo abaixo da Estação de Trens, onde as almas aguardavam sua derradeira viagem. Também foi criada a Guarda do Além, cuja função era a de recolher  e evitar que qualquer espírito se extraviasse de seu destino. E coube a Simois o cargo de Encarregado Chefe da subseção 4, que compreendia a cidade de Timisoara e redondezas.

sexta-feira, 23 de março de 2012

Amigo Condor




Querido amigo,

Vê-lo, hoje pela manhã, fez-me um bem danado e me trouxe grande alívio. Foram muitos dias sem sua visita; o que aconteceu? Cheguei a pensar que estivesse morto, ou que tivesse desistido de mim. Não fique tanto tempo sem vir, por favor; sabe que preciso de você.
Enquanto esteve fora, algumas coisas mudaram por aqui. Sou o único preso agora; a francesa e os americanos foram levados há alguns dias. Não sei o que houve com eles, mas, certamente, estão melhores que eu. Não. Não se preocupe. Não tenho intenção de tentar aquilo de novo; vou até o fim sem me entregar. Além do mais, há duas coisas que tenho muita esperança de realizar se sair daqui: publicar o livro e subir aquela montanha que você me mostrou em nosso primeiro voo juntos.
Tentei voar sozinho quando você se demorou, mas não consegui. Sem sua ajuda, quando fecho os olhos, ao invés de alçar voo, mergulho em uma escuridão assustadora e tenho a sensação de estar caminhando à beira do precipício. Não posso sem você.
Lembrei-me, nesses dias, da primeira vez em que você sobrevoou o acampamento. Foi incrível o efeito que causou em todos. Estávamos lá, olhando para o céu, prisioneiros e guerrilheiros, homens e mulheres, americanos, europeus e latinos, militares e civis, todos contemplando, maravilhados, seu voo. Por um instante, não existiram diferenças; éramos seres humanos admirando a obra divina. Pena não ter durado. Logo, estávamos cientes dos abismos que existiam entre nós. Porém, aquele momento deu-me novo ânimo e me reacendeu a esperança de que ainda haja formas de entendimento.
Os outros se perguntam do porquê de você sempre voltar. Alguns dizem que está à espera de se banquetear com nossos corpos, outros, que se trata de uma ave de mau agouro. Mas eu sei que você retorna por mim, para que voemos juntos e eu possa ver o que você vê daí de cima. Do alto, não somos diferentes, não temos fronteiras e a humanidade realmente parece caminhar no mesmo passo. Gosto dessa visão! Muito mais do que da que tenho aqui embaixo. Nós somos seres gregários, amigo, mas não suportamos a proximidade com outros de nossa espécie. É um contrassenso, eu sei...
Vi, aqui, prisioneiros, irmãos de infortúnio, brigando por um pedaço maior de sabão ou por uma colher de arroz a mais. Nem sempre é questão de sobrevivência. É o querer estar em vantagem, típico do ser humano. Lutas, como a que me faz vítima, existem, porque temos mais facilidade de enxergarmos diferenças que semelhanças entre nós. Criamos línguas, religiões, moedas, classes, tudo para que nos distingamos e separemos. Usamos o pretexto de formarmos grupos de iguais para segregar os que são diferentes. Mas que diferenças tão grandes seriam essas que nos impedem de estarmos juntos? Não sei responder a isso e, quanto mais penso, mais estranha essa questão me parece.
Por isso gosto de ver o mundo por sua perspectiva. Vistos assim, somos apenas serezinhos muito parecidos caminhando sobre a Terra. Talvez seja esta a razão da paciência de Deus conosco: vistos das alturas, somos mais bonitos, mais fraternos e menos mesquinhos.
Situação inesperada se instaurou desde que os outros se foram: tenho sido mais bem tratado pelos guardas. Acho que por eu estar sozinho, não enxergam em mim grande ameaça. O engraçado é que sempre tive a impressão de que os americanos me temiam por eu ser latino, portanto  mais parecido com os seqüestradores do que com eles. Já os seqüestradores tinham receio de mim por eu fazer parte do grupo de seqüestrados. Então, a que grupo eu realmente pertencia? Creio que a ambos; talvez eu fosse o elo entre eles e, por essa razão, rejeitado pelos dois.
Bem, companheiro, acho que vou encerrar por aqui; estou cansado e a luz já é pouca. Espero que venha buscar-me em breve. Acredito que mais duas ou três viagens sejam suficientes para que eu tenha tudo o que preciso para o livro. Darei seu nome a ele.
Obrigado por ter voltado e peço que não desista de mim.

Com toda gratidão e estima,
                     Juan Miguel.
Colômbia. 


terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A bruxa, o frade e os guardiões






Depois de uma noite terrivelmente longa, o dia enfim amanhecia e a vila continuava envolta em sombras. A densa neblina, que descera há alguns dias, permanecia, tornando tudo mais lúgubre. O cheiro da carne queimada ainda impregnava o ar, embora a fogueira há muito se tivesse extinguido. Thomas Bower achava que jamais se livraria daquele odor, nem tampouco dos horríveis gritos de Marybeth.
Não chorara por ela, nem o faria; não tinha esse direito. Não depois de tê-la arrastado para fora de casa, enquanto ela lhe implorava que acreditasse nela. Muito menos depois de tê-la entregado aos seus algozes, quando, no fundo, não acreditava realmente em sua culpa. Covarde era ele e merecia todo o sofrimento e o remorso que carregava.
Caminhava apressado através do nevoeiro, seguido de perto pelo jovem William. Mais uma morte ocorrera na madrugada, sinal de que queimar a bruxa não havia resolvido os problemas. Então, como principal membro do conselho da vila, coube a ele a tarefa de ir até a casa, na margem do bosque, buscar as respostas que pudessem solucionar aquela situação.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Tarde demais pra esquecer




Embora o dia estivesse frio em São Paulo, Lucas pediu ao taxista para deixá-lo a dois quarteirões de seu destino. Queria caminhar um pouco, refletir sobre o telefonema recebido um dia antes. A verdade era que não tinha nenhuma pressa de chegar ao encontro marcado e ainda se perguntava por que havia concordado com aquilo. A princípio, pensou que fosse apenas curiosidade, mas acabou aceitando que havia mais em sua decisão. Ele sabia que aquela história não estava encerrada e talvez já fosse hora de dar a ela um fim.
Lembrou-se da última vez em que tinham se encontrado, há dez anos, naquele mesmo local e das palavras de ódio que trocaram. Desde então, não se falaram mais. Nesse tempo, chegou a acreditar que aquilo já não o afetava, que havia superado, mas bastou ouvir sua voz ao telefone para que toda a mágoa viesse à tona.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Carta a Che Guevara


Texto escrito para o Sétimo Desafio de Escritores, cuja tarefa consistia em escrever uma carta a Che falando das atualidades do mundo em relação à luta e os ideais de Guevara.



Companheiro Ernesto,

Surpreendentemente, aos setenta e nove anos, continuo por aqui, respirando, lúcido e consciente de meus atos. Não espere que haja nesta carta um pedido de desculpas. Não é por arrependimento que lhe escrevo, mas por uma súbita necessidade de compartilhar minha frustração. Saiba que, com minha traição, acabei fazendo-lhe um favor. Você se tornou uma personalidade admirada no mundo todo, por pessoas inclusive que jamais o entenderiam se o conhecessem. Soube até que o consideram santo em certos lugares, o que não deixa de ser muito engraçado; a santidade é algo que nunca estaria ao alcance de homens como nós. 
Livrei-o de se tornar uma figura patética, como aconteceu ao seu amigo Fidel. 
Quanto a mim, continuo incógnito, como prometeram os americanos; o serviço secreto deles foi muito eficiente em desaparecer comigo.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Momentos


Conto escrito para o Desafio de Escritores, cujo tema foi a canção "Wooden Boat".

Foi numa terça ou quarta-feira, não me lembro bem, mas é certo que era um dia de pouco movimento. Ele entrou, bem vestido, embora a gravata estivesse frouxa e o colarinho desabotoado. Nunca o havia visto por ali e fiquei pensando que tipo de cliente ele seria. Tinha por volta dos sessenta anos e parecia cansado, contudo, seus olhos azuis eram atentos, vívidos. Sentou-se na ponta do balcão, longe de onde eu arrumava os copos, e ficou ali, observando-me em silêncio. Cheguei a pensar que ele fosse do tipo calado; daqueles que bebiam um copo após o outro, pagavam a conta e iam embora sem dizer nada. Porém, aqueles olhos pareciam ansiosos demais para pertencerem a alguém quieto.
Levei-lhe um copo e perguntei o que queria para beber. Ele olhou as prateleiras atrás de mim indeciso e deu de ombros. Apanhei uma garrafa de bourbon e lhe acenei com ela, ao que ele assentiu. Servi-lhe uma dose, perguntando se desejava algo mais. Ele sorriu, pegou o copo e sorveu a bebida toda num gole.
— Por gentileza, jovem...
— Amy.
— Jovem Amy, pode deixar a garrafa aqui comigo.
Eu continuei a organizar os copos sob o balcão, ocasionalmente lançando-lhe um olhar de relance. Ele ficou ali por certo tempo, bebericando o bourbon, parecendo perdido em seus pensamentos. Fui pega de surpresa, quando sua voz ecoou pelo bar vazio.