Querido amigo,
Vê-lo, hoje pela
manhã, fez-me um bem danado e me trouxe grande alívio. Foram muitos dias sem
sua visita; o que aconteceu? Cheguei a pensar que estivesse morto, ou que
tivesse desistido de mim. Não fique tanto tempo sem vir, por favor; sabe que
preciso de você.
Enquanto esteve fora,
algumas coisas mudaram por aqui. Sou o único preso agora; a francesa e os
americanos foram levados há alguns dias. Não sei o que houve com eles, mas,
certamente, estão melhores que eu. Não. Não se preocupe. Não tenho intenção de tentar
aquilo de novo; vou até o fim sem me entregar. Além do mais, há duas coisas que
tenho muita esperança de realizar se sair daqui: publicar o livro e subir
aquela montanha que você me mostrou em nosso primeiro voo juntos.
Tentei voar sozinho quando você se demorou, mas não consegui. Sem sua ajuda, quando fecho os olhos,
ao invés de alçar voo, mergulho em uma escuridão assustadora e tenho a
sensação de estar caminhando à beira do precipício. Não posso sem você.
Lembrei-me, nesses
dias, da primeira vez em que você sobrevoou o acampamento. Foi incrível o
efeito que causou em todos. Estávamos lá, olhando para o céu, prisioneiros e
guerrilheiros, homens e mulheres, americanos, europeus e latinos, militares e
civis, todos contemplando, maravilhados, seu voo. Por um instante, não
existiram diferenças; éramos seres humanos admirando a obra divina. Pena não
ter durado. Logo, estávamos cientes dos abismos que existiam entre nós. Porém,
aquele momento deu-me novo ânimo e me reacendeu a esperança de que ainda haja
formas de entendimento.
Os outros se
perguntam do porquê de você sempre voltar. Alguns dizem que está à espera de se
banquetear com nossos corpos, outros, que se trata de uma ave de mau agouro.
Mas eu sei que você retorna por mim, para que voemos juntos e eu possa ver o
que você vê daí de cima. Do alto, não somos diferentes, não temos fronteiras e
a humanidade realmente parece caminhar no mesmo passo. Gosto dessa visão! Muito
mais do que da que tenho aqui embaixo. Nós somos seres gregários, amigo, mas
não suportamos a proximidade com outros de nossa espécie. É um contrassenso, eu
sei...
Vi, aqui,
prisioneiros, irmãos de infortúnio, brigando por um pedaço maior de sabão ou
por uma colher de arroz a mais. Nem sempre é questão de sobrevivência. É o
querer estar em vantagem, típico do ser humano. Lutas, como a que me faz
vítima, existem, porque temos mais facilidade de enxergarmos diferenças que
semelhanças entre nós. Criamos línguas, religiões, moedas, classes, tudo para
que nos distingamos e separemos. Usamos o pretexto de formarmos grupos de
iguais para segregar os que são diferentes. Mas que diferenças tão grandes seriam essas
que nos impedem de estarmos juntos? Não sei responder a isso e, quanto mais
penso, mais estranha essa questão me parece.
Por isso gosto de ver
o mundo por sua perspectiva. Vistos assim, somos apenas serezinhos muito
parecidos caminhando sobre a Terra. Talvez seja esta a razão da paciência de
Deus conosco: vistos das alturas, somos mais bonitos, mais fraternos e menos
mesquinhos.
Situação inesperada
se instaurou desde que os outros se foram: tenho sido mais bem tratado pelos
guardas. Acho que por eu estar sozinho, não enxergam em mim grande ameaça. O
engraçado é que sempre tive a impressão de que os americanos me temiam por eu
ser latino, portanto mais parecido com
os seqüestradores do que com eles. Já os seqüestradores tinham receio de mim
por eu fazer parte do grupo de seqüestrados. Então, a que grupo eu realmente
pertencia? Creio que a ambos; talvez eu fosse o elo entre eles e, por essa
razão, rejeitado pelos dois.
Bem, companheiro,
acho que vou encerrar por aqui; estou cansado e a luz já é pouca. Espero
que venha buscar-me em breve. Acredito que mais duas ou três viagens sejam
suficientes para que eu tenha tudo o que preciso para o livro. Darei seu nome a
ele.
Obrigado por ter
voltado e peço que não desista de mim.
Com toda gratidão e
estima,
Juan
Miguel.
Colômbia.