Então um dia, senti o cheiro. O odor ranço e azedo de morte velha e
abandono.
Não posso dizer que tenha sido surpresa saber que ela estava
realmente morta. Não vou dissimular dizendo-me chocado, mas me
entristeci.
Não chorei, nem procurei culpados; não tinha esse direito. Não
depois de assistir a sua agonia cínica e passivamente. Eu a vi
minguar e sucumbir à própria mediocridade.
Estava lá quando seus companheiros a abandonaram e nada fiz para
retê-los.
Primeiro, foi-se o Entusiasmo.
Partiu cheio de mágoas e com
estardalhaço. Fez acusações e se disse injustiçado. Culpou-a
duramente, causou-lhe um enorme sofrimento, mas não a feriu de
morte. Acho até que sua partida possa ter-lhe trazido certo
alívio. Percebi crescer nela uma calma reconfortante e me senti bem
com aquilo. Talvez tenha chegado a pensar que ela fosse ficar bem.
Não sei. Só posso dizer que nada fiz, nem me incomodei de fato.
Já quando partiu a Perseverança, eu soube que era sério.
Explicou-se, antes de ir. Falou de seu cansaço e desculpou-se por
não poder continuar.
Ela não pediu para que ficasse, nem disse que
compreendia.
Senti que também estava cansada. E só então pude
ver a falta que o Entusiasmo lhe fazia .
Ela poderia ter morrido ali, quando a Perseverança a deixou, mas sua
angústia perdurou renitente, com poucos bons e muitos maus dias.
Ainda restava-lhe sua mais valiosa companheira e dela não abriria
mão, pois era onde tudo começava, era o que a movia. Mesmo em seus
piores momentos, em suas fases mais feias e sem brilho, podia sentir
a presença da Criatividade a lhe insuflar os ânimos. Amava-a,
acreditava nela com praticamente nenhuma ressalva.
E talvez sejam esses os motivos que fizeram a Criatividade não se
despedir. Fugiu furtiva e envergonhada. Não a acusou, não pediu
desculpas e nada lhe deixou.
Depois disso, lembro-me de tê-la visto muito pouco. Desfez-se de
algumas companhias incomodas, como a Expectativa e a Pretensão.
Flertou brevemente com a Frustração e, por fim, entregou-se à
Amargura. Creio ter sido a última vez em que a vi ainda inteira.
Desde então, nossos encontros têm sido estranhos e ao acaso.
Confesso que, para mim, é desconfortável deparar-me com o fantasma
de minha Escrita.
Ela, no entanto, parece não se aborrecer; não
mais.
Eventualmente, volta para me assombrar e traz de arrasto algum
de seus antigos companheiros. Às vezes, fica tempo suficiente para
que nos reconheçamos um pouco. Porém, normalmente, tudo o que quer
é lembrar-me de algo que poderíamos ter sido e nunca fomos.
Jamais tive a oportunidade de enterrá-la, nem acho que o faria. Mas,
se não posso ser acusado de sua morte, certamente sinto-me seu
cúmplice. Afinal, o Descaso é também assassino.