"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



sexta-feira, 23 de maio de 2014

Cúmplice de Morte



Então um dia, senti o cheiro. O odor ranço e azedo de morte velha e abandono.
Não posso dizer que tenha sido surpresa saber que ela estava realmente morta. Não vou dissimular dizendo-me chocado, mas me entristeci.
Não chorei, nem procurei culpados; não tinha esse direito. Não depois de assistir a sua agonia cínica e passivamente. Eu a vi minguar e sucumbir à própria mediocridade.
Estava lá quando seus companheiros a abandonaram e nada fiz para retê-los.
Primeiro, foi-se o Entusiasmo. 
Partiu cheio de mágoas e com estardalhaço. Fez acusações e se disse injustiçado. Culpou-a duramente, causou-lhe um enorme sofrimento, mas não a feriu de morte. Acho até que sua partida possa ter-lhe trazido certo alívio. Percebi crescer nela uma calma reconfortante e me senti bem com aquilo. Talvez  tenha chegado a pensar que ela fosse ficar bem. Não sei. Só posso dizer que nada fiz, nem me incomodei de fato.
Já quando partiu a Perseverança, eu soube que era sério. 
Explicou-se, antes de ir. Falou de seu cansaço e desculpou-se por não poder continuar. 
Ela não pediu para que ficasse, nem disse que compreendia.
Senti que também estava cansada. E só então pude ver a falta que o Entusiasmo lhe fazia .
Ela poderia ter morrido ali, quando a Perseverança a deixou, mas sua angústia perdurou renitente, com poucos bons e muitos maus dias.
Ainda restava-lhe sua mais valiosa companheira e dela não abriria mão, pois era onde tudo começava, era o que a movia. Mesmo em seus piores momentos, em suas fases mais feias e sem brilho, podia sentir a presença da Criatividade a lhe insuflar os ânimos. Amava-a, acreditava nela com praticamente nenhuma ressalva. 
E talvez sejam esses os motivos que fizeram a Criatividade não se despedir. Fugiu furtiva e envergonhada. Não a acusou, não pediu desculpas e nada lhe deixou.
Depois disso, lembro-me de tê-la visto muito pouco. Desfez-se de algumas companhias incomodas, como a Expectativa e a Pretensão. Flertou brevemente com a Frustração e, por fim, entregou-se à Amargura. Creio ter sido a última vez em que a vi ainda inteira.
Desde então, nossos encontros têm sido estranhos e ao acaso. Confesso que, para mim, é desconfortável deparar-me com o fantasma de minha Escrita. 
Ela, no entanto, parece não se aborrecer; não mais. 
Eventualmente, volta para me assombrar e traz de arrasto algum de seus antigos companheiros. Às vezes, fica tempo suficiente para que nos reconheçamos um pouco. Porém, normalmente, tudo o que quer é lembrar-me de algo que poderíamos ter sido e nunca fomos.
 Jamais tive a oportunidade de enterrá-la, nem acho que o faria. Mas, se não posso ser acusado de sua morte, certamente sinto-me seu cúmplice. Afinal, o Descaso é também assassino.

terça-feira, 13 de maio de 2014

NÓS somos assim.



Somos o fracasso.
Independente do que acreditamos não há como nos vermos de outra maneira. Somos o fracasso da Criação e da Evolução. Não atendemos às expectativas de Deus, nem tampouco somos melhores que nossos ancestrais primitivos. Ainda somos turba, somos bárbaros, somos animais guiados por instintos e sem empatia. Não qualquer animal, somos os piores, pois nos julgamos superiores.
Adoramos ser o que somos. Orgulhosos das bandeiras que levantamos e das fronteiras que nos limitam. Somos homens, mulheres, machistas, feministas, homos, héteros, cristãos, muçulmanos, ateus, liberais, conservadores, capitalistas, comunistas, negros, brancos... só não somos humanos. Certamente não no sentido de enxergarmos o outro como semelhante.
Somos educados, ou fingimos ser, e dizemos que “aceitamos” as diferenças, mas, cá entre nós, de que vale e a quem pode interessar essa aceitação?
Falamos em respeito e bradamos por ele. Contudo nosso respeito acaba quando saímos da condição de quem pleiteia para a de quem decide. E decidimos sempre pensando em nós . Fazemos concessões esperando que o mesmo seja feito em contrapartida. E quando frustrados, não nos furtamos de exigir a reciprocidade. Ora, que nobre somos!
E nos arrastamos nessa dança macabra há milênios, vivendo a ilusão de que melhoramos, evoluímos, nos aperfeiçoamos. Inocentes ou hipócritas, não importa, o que vale é seguir em frente. Até nos depararmos com cenas que nos fazem lembrar de onde viemos. Acontecimentos que chocam e nos fazem virar o rosto. Repudiamos, é claro, e repetimos o mantra de que não somos assim. Não matamos, não torturamos, não sequestramos, não massacramos... não somos assim!
Daí criamos mais um “ELES”. Mas o que são ELES, então, se não são NÓS?
ELES são todos os que fazem aquilo que não fazemos; ao menos não quando alguém nos vê. ELES são NÓS em situações que não vivemos, e que, em nossa perfeição, nos é inimaginável. Assim, dividimos ainda mais o nosso coletivo em bons e maus, íntegros e desonestos, simpáticos e intolerantes... nós e eles.
Amamos fazer parte do NÓS, mas lá no fundo, bem dentro da nossa maior intimidade, sabemos que o que realmente nos importa é o EU.
Isso, no entanto, é coisa dELES.
Não, NÓS não somos assim.