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Fonte: Google Imagens |
Deitada
na cama, a mulher olhava o quadro. A moça sorria-lhe, congelada num momento de
anos atrás. Nunca lhe devolveu o sorriso. Ao invés disso, fitava-a com misto de
inveja e amargura.
Era
seu novo ritual: deitar-se sobre os lençóis, ainda revoltos da noite anterior,
e contemplar a enorme foto emoldurada. Ficava por muitos minutos, tentando
roubar os pensamentos da moça que sorria para sempre. Criava histórias para
ela. Imaginava situações que teriam antecedido o instante ali eternizado e as que
o sucederam. As inúmeras danças daquela noite e das noites seguintes de sua
vida agitada e excitante. Mas a realidade arrastava-a de volta, e os lençóis
torcidos sob seu corpo começavam a incomodar.
Levantava-se
e se vestia para o trabalho. Olhava a moça com desprezo e indignação. Quem era
ela para rir daquela maneira? Acaso não envelheceria e se daria conta de que a
vida não é uma festa que dura para sempre? Não. A moça, não. Jamais sofreria decepções
ou se frustraria, pois era eterna e sorria, protegida em sua moldura de madeira
e vidro. Alheia ao seu sofrimento, ela esbanjava uma felicidade que há muito
lhe era estranha.
—
Tola! — disse a mulher, certa manhã, enquanto fazia a cama.
—
Hipócrita!
A
voz irritada que ecoou no quarto quase fez seu coração parar. Olhou ao redor,
temendo ter sido surpreendida em seu momento de intimidade com o quadro.
Sentia-se excêntrica e seria constrangedor dividir seu segredo com alguém além
da moça.
Mas
era a moça quem lhe falava. Do quadro, ela a olhava zangada e ofendida. O
sorriso fora substituído por um cenho franzido, que a fazia parecer muito mais
velha.
—
Não! Você não pode! — gritou a mulher horrorizada.
—
Como ousa?! Como se atreve olhar para mim com mágoa? Hipócrita! É inveja o que
sente quando me vê sorrindo? Como é possível?
A
mulher chorava, não de medo, mas de uma tristeza inconsolável.
—
Qualquer um pode me julgar, menos você — continuou a moça implacável — É
patético vê-la fantasiando o que houve antes e depois de mim. Você sabe o que
houve e porque cada coisa aconteceu. O que você vê quando me olha que a faz
sentir-se tão mal?
—
Você é jovem e bela. E tem esse brilho no olhar, que me machuca profundamente.
Como não ter inveja disso? — respondeu a mulher, encolhida contra a parede como
uma criança repreendida.
—
Sabe o quanto é difícil sorrir enquanto olho para você e vejo o que me tornei?
Não tem idéia do esforço que faço para manter o brilho nos olhos quando sei que
o medo que a devasta já está plantado em mim. E todos os dias, a minha
esperança é que, me vendo sorrir, você se lembre de quem é, de que também
sorria apesar do medo. Como pode ter esquecido de que minha vida não é
perfeita? Você sabe de tudo pelo o que passei. Sabe que há dias de tristeza,
mas sempre há um dia seguinte. Agora, olho pra você, vejo o que o dia seguinte me
reserva e penso que realmente não há porque sorrir.
A
moça também chorava.
—
Não! Não! Não! — gritou a mulher em desespero — Você não pode chorar! Precisa
sorrir. Você sorri para sempre!
Mas
a moça já exibia um olhar vazio e congelado no tempo. Em seu rosto, lágrimas eternas
desfaziam a maquiagem.
Desconsolada,
a mulher guardou o quadro no fundo do armário; a visão do sofrimento da moça
lhe era insuportável.
Sem
a moça, a mulher criou um novo ritual. Todas as manhãs, antes de vestir-se para
o trabalho, contemplava o rosto sério, e às vezes amargurado, no espelho e esboçava
um sorriso, ainda que tímido. Cultivava-o dia-a-dia, até que pudesse, enfim, voltar a invejar-se novamente.