"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



terça-feira, 27 de agosto de 2013

Traição


Não foi preciso muito tempo para que seus olhos sonolentos acostumassem-se com a penumbra. A luz da enorme lua penetrava pela janela e iluminava o corpo nu ao seu lado.
Remexeu-me devagar e tocou de leve, com as pontas dos dedos, as costas largas voltadas para ela. Quase desejou que ele despertasse. Conteve o ímpeto de abraçá-lo e desvencilhou-se das cobertas com cuidado.
Apanhou as roupas espalhadas pelo chão e, enquanto as vestia, sentiu as lágrimas arderem-lhe nos olhos. Secou-as antes que corressem pelo rosto. Afastou a sensação incomoda de pesar com um gesto de impaciência, como quem se livra de um inseto impertinente. Lembrou-se mais uma vez dos motivos que a levavam a agir sempre daquela forma e a decisão cristalizou-se nela: tinha que fazê-lo.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A mulher e a moça

Fonte: Google Imagens

Deitada na cama, a mulher olhava o quadro. A moça sorria-lhe, congelada num momento de anos atrás. Nunca lhe devolveu o sorriso. Ao invés disso, fitava-a com misto de inveja e amargura.
Era seu novo ritual: deitar-se sobre os lençóis, ainda revoltos da noite anterior, e contemplar a enorme foto emoldurada. Ficava por muitos minutos, tentando roubar os pensamentos da moça que sorria para sempre. Criava histórias para ela. Imaginava situações que teriam antecedido o instante ali eternizado e as que o sucederam. As inúmeras danças daquela noite e das noites seguintes de sua vida agitada e excitante. Mas a realidade arrastava-a de volta, e os lençóis torcidos sob seu corpo começavam a incomodar.
Levantava-se e se vestia para o trabalho. Olhava a moça com desprezo e indignação. Quem era ela para rir daquela maneira? Acaso não envelheceria e se daria conta de que a vida não é uma festa que dura para sempre? Não. A moça, não. Jamais sofreria decepções ou se frustraria, pois era eterna e sorria, protegida em sua moldura de madeira e vidro. Alheia ao seu sofrimento, ela esbanjava uma felicidade que há muito lhe era estranha.
— Tola! — disse a mulher, certa manhã, enquanto fazia a cama.
— Hipócrita!
A voz irritada que ecoou no quarto quase fez seu coração parar. Olhou ao redor, temendo ter sido surpreendida em seu momento de intimidade com o quadro. Sentia-se excêntrica e seria constrangedor dividir seu segredo com alguém além da moça.
Mas era a moça quem lhe falava. Do quadro, ela a olhava zangada e ofendida. O sorriso fora substituído por um cenho franzido, que a fazia parecer muito mais velha.
— Não! Você não pode! — gritou a mulher horrorizada.
— Como ousa?! Como se atreve olhar para mim com mágoa? Hipócrita! É inveja o que sente quando me vê sorrindo? Como é possível?
A mulher chorava, não de medo, mas de uma tristeza inconsolável.
— Qualquer um pode me julgar, menos você — continuou a moça implacável — É patético vê-la fantasiando o que houve antes e depois de mim. Você sabe o que houve e porque cada coisa aconteceu. O que você vê quando me olha que a faz sentir-se tão mal?
— Você é jovem e bela. E tem esse brilho no olhar, que me machuca profundamente. Como não ter inveja disso? — respondeu a mulher, encolhida contra a parede como uma criança repreendida.
— Sabe o quanto é difícil sorrir enquanto olho para você e vejo o que me tornei? Não tem idéia do esforço que faço para manter o brilho nos olhos quando sei que o medo que a devasta já está plantado em mim. E todos os dias, a minha esperança é que, me vendo sorrir, você se lembre de quem é, de que também sorria apesar do medo. Como pode ter esquecido de que minha vida não é perfeita? Você sabe de tudo pelo o que passei. Sabe que há dias de tristeza, mas sempre há um dia seguinte. Agora, olho pra você, vejo o que o dia seguinte me reserva e penso que realmente não há porque sorrir.
A moça também chorava.
— Não! Não! Não! — gritou a mulher em desespero — Você não pode chorar! Precisa sorrir. Você sorri para sempre!
Mas a moça já exibia um olhar vazio e congelado no tempo. Em seu rosto, lágrimas eternas desfaziam a maquiagem.
Desconsolada, a mulher guardou o quadro no fundo do armário; a visão do sofrimento da moça lhe era insuportável.

Sem a moça, a mulher criou um novo ritual. Todas as manhãs, antes de vestir-se para o trabalho, contemplava o rosto sério, e às vezes amargurado, no espelho e esboçava um sorriso, ainda que tímido. Cultivava-o dia-a-dia, até que pudesse, enfim, voltar a invejar-se novamente.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Promessas


Não tive para ele lágrimas. Chamaram-me fria.
Não me compadeço de perjuros.
Quando levantou a mão contra mim, prometi que não se repetiria. Ele também.
Não foi capaz de manter sua promessa. Eu, sim.