Havia algo de mórbido naquele seu costume de observar os barcos chegando
ao porto. Angustiava-se ao ver os imigrantes desembarcarem de seus navios,
cheios de esperança e medo, e ainda assim, sempre que podia estava ali, a
contemplar a turba maltrapilha vinda de diversas partes do mundo.
Lembrava-se do pai, que saíra da terra natal cheio
de planos e que não chegara àquela que era a capital do mundo. Da irmã mais
velha, que também sucumbira à doença durante a viagem, e que sonhava com uma
Londres resplandecente, onde teriam posses e seriam princesas. Mas, na maioria
das vezes, lembrava-se de si mesma, chegando sozinha numa cidade que nada tinha
da prosperidade dos planos do pai ou da beleza dos sonhos da irmã. A primeira
impressão que tivera de Londres foi a de que ela tentava repelir os
recém-chegados com o seu mau-cheiro.
A cidade fervilhava naqueles dias. As pessoas nas
ruas pareciam sempre com pressa. Tudo muito diferente do vilarejo irlandês onde
nascera. Retirara do bolso do pai um pedaço de papel com um endereço;
talvez alguém lá o conhecesse. Mas Mary não sabia ler e ninguém estava disposto
a sequer olhar o papel que trazia nas mãos. Ninguém, exceto um marinheiro rude
que a agarrara pelo braço e insistira para que ela o acompanhasse. Assustada,
Mary fugiu dele, deixando para trás o endereço.
Vagou por dias, ao longo do Tâmisa, esmolando e
procurando trabalho. Em Londres não havia muitos empregos para uma garota que
costumava pastorear ovelhas. Tentara trabalhar em uma das novas fábricas, mas
acabara substituída por uma jovem chinesa, pois era muito lenta no
manuseio do tear. Mary não conseguia entender como tanta gente podia ser
atraída para um lugar tão ruim. Não havia emprego, não havia moradia e sobravam
doenças e fome.
Quando o velho, dono da espelunca onde alugava um
quarto, jogou-a sobre o balcão da hospedaria e a violentou, Mary não resistiu.
Não tinha mesmo como pagá-lo e, quem sabe assim, o homem a deixasse em paz por
alguns dias. Andava pelas ruas, fazendo pequenos trabalhos nos mercados,
mendigando e, quando não havia alternativa, prostituindo-se. Tinha nojo, porém
tinha fome. E sempre que se curvava para apanhar as moedas que algum cliente
atirava no chão, lembrava-se do pai, que dizia que em Londres ela seria
uma princesa.
Naquele ano, o príncipe George IV realizou uma
queima de fogos no Hyde Park e foi então que Mary conheceu o lado rico de
Londres. O parque era belíssimo. Iluminado com suas lâmpadas a óleo, estava
repleto de gente fina e bem vestida. Era essa a cidade com a qual a irmã
sonhara. Nada tinha a ver com os becos fétidos de Camden Town, onde os
imigrantes se amontoavam. Mary sentiu os olhos arderem e se encherem de
lágrimas; aquela Londres jamais estaria ao seu alcance.
Quando a queima de fogos começou, ocorreu um pequeno
tumultuo próximo a ela. Uma mulher ricamente vestida estava caída e tentava
pôr-se em pé, apoiando-se em
uma bengala. Mary estava indo em seu auxílio, quando uma
senhora caminhou até a mulher e cuspiu-lhe no rosto. Ela nada disse, apenas
limpou-se com seu delicado lenço de renda e, apoiada por Mary, levantou-se.
— Merci, ma chérie! Será que você pode
me ajudar a chegar ao meu carro? — disse ela, com acentuado sotaque francês.
Mary assentiu em silêncio, oferecendo-lhe o braço
como apoio. Caminharam sob os olhares curiosos, até chegarem a um coche, parado
numa rua próxima, do qual um cocheiro apressou-se em abrir a porta.
— Obrigada, Alfred — disse ela — Quanto a
você, ma petite, posso saber qual é seu nome?
— É Mary, senhora, Mary Mcloud.
— Mcloud? Ora, ora, se não é uma jovem flor
irlandesa! — exclamou ela, em um inglês carregado como o de Mary — Então, entre
Mary Mcloud. Vamos até minha
casa para que eu possa melhor agradecer-lhe por
sua gentileza.
Mary entrou no coche, sem jeito e um tanto
encabulada. Estava admirada com aquela mulher de aparência tão extraordinária,
perfumada, maquiada, bem vestida, de gestos leves e delicados. Ela se
apresentou comoMadame Chantelle, recuperando subitamente o sotaque
ao pronunciar o próprio nome.
A casa de Madame era um palacete em
Kensinton, não muito distante do palácio real. Mary estava maravilhada com a
beleza do lugar; construções imponentes, ruas limpas. Quem seria aquela mulher?
Talvez uma nobre. A casa era ainda mais bonita por dentro. O salão principal
era imenso, repleto de móveis finos e decorado com bom gosto.
Assim que entrou, Madame foi prontamente assistida
por uma jovem morena, de aparência exótica e muito bela, e conduzida até
um sofá. Ela pediu à jovem, que atendia por Suya, que lhes trouxesse chá e algo
para comerem. Então, acenou para Mary, convidando-a a sentar-se ao seu
lado.
— Então, Mary, o que faz em Londres?
Mary engoliu em seco, não sabia com responder. Como
dizer àquela mulher que errava pelas ruas dos piores bairros, vivendo de
caridade ou se vendendo por algumas moedas? Porém, antes que precisasse dizer
qualquer coisa, Madame começou a falar.
— Sabe, Mary, eu também vim da Irlanda. O nome
Chantelle e o sotaque francês são só algumas das coisas que tive que aprender
para não continuar me vendendo a marinheiros por um pedaço de pão. As francesas
são as melhores nesta arte e eu tive que me educar.
— Então a senhora é...
— Uma meretriz. A mais próspera de Londres — disse
ela, com um sorriso — Mas a diferença entre mim e as que trabalham próximas ao
porto, meu bem, está só no tipo de homens que atendo e no quanto eles me pagam.
O trabalho é o mesmo, apenas feito de maneira mais sofisticada em um ambiente
requintado.
— E este lugar? — perguntou Mary, acanhada.
— Bom, esta é uma história longa demais para um chá
— respondeu Madame, soltando um profundo suspiro — Eu olho para você, Mary, e
vejo a mim mesma, quando cheguei há vinte anos, perdida, envergonhada, faminta.
Não houve, na época, quem me estendesse a mão. Quanto a você, o que posso
oferecer-lhe é o que tenho. Se quiser, pode ficar e aprender a ser uma dama, a
estar entre os nobres, os ricos burgueses e os santos homens do clero. Aqui,
eles a tratarão como a uma princesa. Mas o preço disto é que lhe cuspam no
rosto, quando sair às ruas. Estes mesmos cavalheiros que aqui lhe encherão de
mimos, lhe virarão as costas, quando estiver em público. É apenas um trabalho,
Mary. Terminado o serviço, eles voltam para suas casas e só
retornam quando sentirem necessidade. Afora isto, tomara que eles não lhe
dêem de presente uma doença como a minha — encerrou ela, apanhando sua bengala.
Naquela mesma noite, Mary dormiu em uma das camas
perfumadas da casa de Madame Chantelle. Sonhou com sua irmã e seu pai na
Irlanda. Sonhou consigo mesma, vestida de princesa, descendo a escadaria do
salão de Madame. Desse dia em diante, nunca mais foi Mary, mas tornou-se
Magdalen, uma das mais requisitadas garotas do palacete.
Cinco anos depois, Madame não resistiu à doença, que
lhe roubou os movimentos e, em seguida, a sanidade. À Magdalen, deixou seus
bens e o pedido para que cuidasse de suas meninas.
Então, sempre que possível, Magdalen pedia a Alfred
que a levasse ao porto para ver a chegada dos imigrantes. Nessa tarde, Anna,
uma jovem recém chegada da Rússia, fazia-lhe companhia no coche e olhava com
preocupação sua expressão angustiada.
— Lady Magdalen, está tudo bem?
— Sim, minha querida, estou bem — respondeu ela —
Acho que já podemos ir, Alfred.
— Milady, posso fazer-lhe uma pergunta? — disse Anna.
— Claro.
— O que a senhora vem procurar no porto?
Magdalen soltou um suspiro profundo e respondeu:
— Procuro por Mary.
Nenhum comentário:
Postar um comentário