"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A Princesa de Londres




Havia algo de mórbido naquele seu costume de observar os barcos chegando ao porto. Angustiava-se ao ver os imigrantes desembarcarem de seus navios, cheios de esperança e medo, e ainda assim, sempre que podia estava ali, a contemplar a turba maltrapilha vinda de diversas partes do mundo.
Lembrava-se do pai, que saíra da terra natal cheio de planos e que não chegara àquela que era a capital do mundo. Da irmã mais velha, que também sucumbira à doença durante a viagem, e que sonhava com uma Londres resplandecente, onde teriam posses e seriam princesas. Mas, na maioria das vezes, lembrava-se de si mesma, chegando sozinha numa cidade que nada tinha da prosperidade dos planos do pai ou da beleza dos sonhos da irmã. A primeira impressão que tivera de Londres foi a de que ela tentava repelir os recém-chegados com o seu mau-cheiro.
A cidade fervilhava naqueles dias. As pessoas nas ruas pareciam sempre com pressa. Tudo muito diferente do vilarejo irlandês onde nascera. Retirara do bolso do pai um pedaço de papel com um endereço; talvez alguém lá o conhecesse. Mas Mary não sabia ler e ninguém estava disposto a sequer olhar o papel que trazia nas mãos. Ninguém, exceto um marinheiro rude que a agarrara pelo braço e insistira para que ela o acompanhasse. Assustada, Mary fugiu dele, deixando para trás o endereço.
Vagou por dias, ao longo do Tâmisa, esmolando e procurando trabalho. Em Londres não havia muitos empregos para uma garota que costumava pastorear ovelhas. Tentara trabalhar em uma das novas fábricas, mas acabara substituída por uma jovem chinesa, pois era muito lenta no manuseio do tear. Mary não conseguia entender como tanta gente podia ser atraída para um lugar tão ruim. Não havia emprego, não havia moradia e sobravam doenças e fome.
Quando o velho, dono da espelunca onde alugava um quarto, jogou-a sobre o balcão da hospedaria e a violentou, Mary não resistiu. Não tinha mesmo como pagá-lo e, quem sabe assim, o homem a deixasse em paz por alguns dias. Andava pelas ruas, fazendo pequenos trabalhos nos mercados, mendigando e, quando não havia alternativa, prostituindo-se. Tinha nojo, porém tinha fome. E sempre que se curvava para apanhar as moedas que algum cliente atirava no chão, lembrava-se do pai, que dizia que em Londres ela seria uma princesa.
Naquele ano, o príncipe George IV realizou uma queima de fogos no Hyde Park e foi então que Mary conheceu o lado rico de Londres. O parque era belíssimo. Iluminado com suas lâmpadas a óleo, estava repleto de gente fina e bem vestida. Era essa a cidade com a qual a irmã sonhara. Nada tinha a ver com os becos fétidos de Camden Town, onde os imigrantes se amontoavam. Mary sentiu os olhos arderem e se encherem de lágrimas; aquela Londres jamais estaria ao seu alcance.
Quando a queima de fogos começou, ocorreu um pequeno tumultuo próximo a ela. Uma mulher ricamente vestida estava caída e tentava pôr-se em pé, apoiando-se em uma bengala. Mary estava indo em seu auxílio, quando uma senhora caminhou até a mulher e cuspiu-lhe no rosto. Ela nada disse, apenas limpou-se com seu delicado lenço de renda e, apoiada por Mary, levantou-se.
— Merci, ma chérie! Será que você pode me ajudar a chegar ao meu carro? — disse ela, com acentuado sotaque francês.
Mary assentiu em silêncio, oferecendo-lhe o braço como apoio. Caminharam sob os olhares curiosos, até chegarem a um coche, parado numa rua próxima, do qual um cocheiro apressou-se em abrir a porta.
— Obrigada, Alfred — disse ela — Quanto a você, ma petite, posso saber qual é seu nome?
— É Mary, senhora, Mary Mcloud.
—  Mcloud? Ora, ora, se não é uma jovem flor irlandesa! — exclamou ela, em um inglês carregado como o de Mary — Então, entre Mary Mcloud. Vamos até minha casa para que eu possa melhor agradecer-lhe por sua gentileza. 
Mary entrou no coche, sem jeito e um tanto encabulada. Estava admirada com aquela mulher de aparência tão extraordinária, perfumada, maquiada, bem vestida, de gestos leves e delicados. Ela se apresentou comoMadame Chantelle, recuperando subitamente o sotaque ao pronunciar o próprio nome.
A casa de Madame era um palacete em Kensinton, não muito distante do palácio real. Mary estava maravilhada com a beleza do lugar; construções imponentes, ruas limpas. Quem seria aquela mulher? Talvez uma nobre. A casa era ainda mais bonita por dentro. O salão principal era imenso, repleto de móveis finos e decorado com bom gosto.
Assim que entrou, Madame foi prontamente assistida por uma jovem morena, de aparência exótica e muito bela, e  conduzida até um sofá. Ela pediu à jovem, que atendia por Suya, que lhes trouxesse chá e algo para comerem. Então, acenou para Mary, convidando-a a sentar-se ao seu lado.
— Então, Mary, o que faz em Londres?
Mary engoliu em seco, não sabia com responder. Como dizer àquela mulher que errava pelas ruas dos piores bairros, vivendo de caridade ou se vendendo por algumas moedas? Porém, antes que precisasse dizer qualquer coisa, Madame começou a falar.
— Sabe, Mary, eu também vim da Irlanda. O nome Chantelle e o sotaque francês são só algumas das coisas que tive que aprender para não continuar me vendendo a marinheiros por um pedaço de pão. As francesas são as melhores nesta arte e eu tive que me educar.
— Então a senhora é...
— Uma meretriz. A mais próspera de Londres — disse ela, com um sorriso — Mas a diferença entre mim e as que trabalham próximas ao porto, meu bem, está só no tipo de homens que atendo e no quanto eles me pagam. O trabalho é o mesmo, apenas feito de maneira mais sofisticada em um ambiente requintado.
— E este lugar? — perguntou Mary, acanhada.
— Bom, esta é uma história longa demais para um chá — respondeu Madame, soltando um profundo suspiro — Eu olho para você, Mary, e vejo a mim mesma, quando cheguei há vinte anos, perdida, envergonhada, faminta. Não houve, na época, quem me estendesse a mão. Quanto a você, o que posso oferecer-lhe é o que tenho. Se quiser, pode ficar e aprender a ser uma dama, a estar entre os nobres, os ricos burgueses e os santos homens do clero. Aqui, eles a tratarão como a uma princesa. Mas o preço disto é que lhe cuspam no rosto, quando sair às ruas. Estes mesmos cavalheiros que aqui lhe encherão de mimos, lhe virarão as costas, quando estiver em público. É apenas um trabalho, Mary. Terminado o serviço, eles voltam para suas casas e só retornam quando sentirem necessidade. Afora isto, tomara que eles não lhe dêem de presente uma doença como a minha — encerrou ela, apanhando sua bengala.
Naquela mesma noite, Mary dormiu em uma das camas perfumadas da casa de Madame Chantelle. Sonhou com sua irmã e seu pai na Irlanda. Sonhou consigo mesma, vestida de princesa, descendo a escadaria do salão de Madame. Desse dia em diante, nunca mais foi Mary, mas tornou-se Magdalen, uma das mais requisitadas garotas do palacete.
Cinco anos depois, Madame não resistiu à doença, que lhe roubou os movimentos e, em seguida, a sanidade. À Magdalen, deixou seus bens e o pedido para que cuidasse de suas meninas.
Então, sempre que possível, Magdalen pedia a Alfred que a levasse ao porto para ver a chegada dos imigrantes. Nessa tarde, Anna, uma jovem recém chegada da Rússia, fazia-lhe companhia no coche e olhava com preocupação sua expressão angustiada.
— Lady Magdalen, está tudo bem?
— Sim, minha querida, estou bem — respondeu ela — Acho que já podemos ir, Alfred.
— Milady, posso fazer-lhe uma pergunta? — disse Anna.
— Claro.
— O que a senhora vem procurar no porto?
Magdalen soltou um suspiro profundo e respondeu:
— Procuro por Mary.





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