Não
foi preciso muito tempo para que seus olhos sonolentos acostumassem-se com a
penumbra. A luz da enorme lua penetrava pela janela e iluminava o corpo nu ao seu
lado.
Remexeu-me
devagar e tocou de leve, com as pontas dos dedos, as costas largas voltadas
para ela. Quase desejou que ele despertasse. Conteve o ímpeto de abraçá-lo e
desvencilhou-se das cobertas com cuidado.
Apanhou as roupas espalhadas pelo chão e, enquanto as vestia, sentiu as lágrimas
arderem-lhe nos olhos. Secou-as antes que corressem pelo rosto. Afastou a
sensação incomoda de pesar com um gesto de impaciência, como quem se livra de
um inseto impertinente. Lembrou-se mais uma vez dos motivos que a levavam a
agir sempre daquela forma e a decisão cristalizou-se nela: tinha que fazê-lo.
Deixou
os sapatos na porta do quarto e caminhou, nas pontas dos pés, até o banheiro.
Demorou-se, contemplando o espelho. Os cabelos em desalinho conferiam-lhe ares
de menina. Só na aparência, pensou.
Bastava um olhar mais atento para perceber a amargura por trás do rosto jovem.
A doçura e inocência da infância, há muito roubadas, deixaram-lhe apenas uma
máscara, bela e conveniente.
Da nécessaire,
retirou o pequeno frasco e a seringa; carregava-os consigo já há alguns dias.
Esperava ter posto fim àquilo muito antes, mas o caso arrastara-se mais que o
esperado. Era ruim quando isso acontecia. Tornava tudo mais doloroso e, às
vezes, ela ficava confusa sobre o que fazia.
Na
noite anterior, ele disse que a amava e num impulso incontrolável ela lhe
respondeu o mesmo. Foi uma coisa estúpida, mas sincera. Talvez por isso toda a
mentira, a traição, doesse tanto. Mas era dor que se curava rapidamente, ela
sabia. Só era preciso extirpar de uma vez o que a machucava.
Mirou-se
novamente no espelho e viu o rosto da mãe; não da mulher arruinada e infeliz
que se entregara ao vício e a morte, mas da jovem atraente que um dia fora.
Tocou de leve a própria face e suspirou; não acabaria como ela.
Voltou,
com passos leves, até a cama e o observou dormir por um instante. Não lhe
dispensou um olhar de carinho ou devoção, mas frio e de rancor. O homem diante
dela não era o mesmo que pouco antes a tomara nos braços e lhe declarara seu
amor. Via nele o rosto do pai, e seu ódio afastou qualquer dúvida que
tivesse. Avançou sobre a cama e, sem hesitar, cravou em seu pescoço a agulha,
empurrando o êmbolo até o fim.
Ele
reagiu brevemente. Sentou-se na cama e fitou-a com um misto de surpresa e
horror. Abriu a boca, mas não conseguiu articular as palavras. Seus olhos,
muito abertos, encararam-na, cheios de dor. Instantes depois, largou-se sobre os
lençóis e, após curta agonia, rendeu-se.
Ela,
estática, assistiu ao horrível desfecho sem esboçar qualquer reação. Estava
feito.
Contornou
a cama, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e apanhou a carteira guardada lá
dentro. Ela continha dinheiro e vários cartões, mas nada disso a interessava.
De um bolso oculto, retirou o pequeno objeto dourado. Colocou-o, junto com a
seringa, na nécessaire, apanhou a
bolsa e os sapatos e partiu.
Mais
tarde, depois de um banho demorado e confortavelmente instalada em sua poltrona
preferida, ela admirava a grossa aliança de ouro. A delicada inscrição dentro
dela revelava que Jéssica era a viúva
que choraria a morte dele. Com enfado, estendeu a mão e depositou a jóia num
pequeno baú decorado com motivos indianos, que já continha quase uma dezena de
anéis semelhantes.
Abriu
o notebook em seu colo e pôs-se a selecionar, numa rede social, um substituto
para seu pai, seu próximo amante, um homem para expurgar os fantasmas de seu
passado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário