"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



terça-feira, 27 de agosto de 2013

Traição


Não foi preciso muito tempo para que seus olhos sonolentos acostumassem-se com a penumbra. A luz da enorme lua penetrava pela janela e iluminava o corpo nu ao seu lado.
Remexeu-me devagar e tocou de leve, com as pontas dos dedos, as costas largas voltadas para ela. Quase desejou que ele despertasse. Conteve o ímpeto de abraçá-lo e desvencilhou-se das cobertas com cuidado.
Apanhou as roupas espalhadas pelo chão e, enquanto as vestia, sentiu as lágrimas arderem-lhe nos olhos. Secou-as antes que corressem pelo rosto. Afastou a sensação incomoda de pesar com um gesto de impaciência, como quem se livra de um inseto impertinente. Lembrou-se mais uma vez dos motivos que a levavam a agir sempre daquela forma e a decisão cristalizou-se nela: tinha que fazê-lo.
Deixou os sapatos na porta do quarto e caminhou, nas pontas dos pés, até o banheiro. Demorou-se, contemplando o espelho. Os cabelos em desalinho conferiam-lhe ares de menina. Só na aparência, pensou. Bastava um olhar mais atento para perceber a amargura por trás do rosto jovem. A doçura e inocência da infância, há muito roubadas, deixaram-lhe apenas uma máscara, bela e  conveniente.
 Da nécessaire, retirou o pequeno frasco e a seringa; carregava-os consigo já há alguns dias. Esperava ter posto fim àquilo muito antes, mas o caso arrastara-se mais que o esperado. Era ruim quando isso acontecia. Tornava tudo mais doloroso e, às vezes, ela ficava confusa sobre o que fazia.
Na noite anterior, ele disse que a amava e num impulso incontrolável ela lhe respondeu o mesmo. Foi uma coisa estúpida, mas sincera. Talvez por isso toda a mentira, a traição, doesse tanto. Mas era dor que se curava rapidamente, ela sabia. Só era preciso extirpar de uma vez o que a machucava.
Mirou-se novamente no espelho e viu o rosto da mãe; não da mulher arruinada e infeliz que se entregara ao vício e a morte, mas da jovem atraente que um dia fora. Tocou de leve a própria face e suspirou; não acabaria como ela.
Voltou, com passos leves, até a cama e o observou dormir por um instante. Não lhe dispensou um olhar de carinho ou devoção, mas frio e de rancor. O homem diante dela não era o mesmo que pouco antes a tomara nos braços e lhe declarara seu amor. Via nele o rosto do pai, e seu ódio afastou qualquer dúvida que tivesse. Avançou sobre a cama e, sem hesitar, cravou em seu pescoço a agulha, empurrando o êmbolo até o fim.
Ele reagiu brevemente. Sentou-se na cama e fitou-a com um misto de surpresa e horror. Abriu a boca, mas não conseguiu articular as palavras. Seus olhos, muito abertos, encararam-na, cheios de dor. Instantes depois, largou-se sobre os lençóis e, após curta agonia, rendeu-se.
Ela, estática, assistiu ao horrível desfecho sem esboçar qualquer reação. Estava feito.
Contornou a cama, abriu a gaveta da mesinha de cabeceira e apanhou a carteira guardada lá dentro. Ela continha dinheiro e vários cartões, mas nada disso a interessava. De um bolso oculto, retirou o pequeno objeto dourado. Colocou-o, junto com a seringa, na nécessaire, apanhou a bolsa e os sapatos e partiu.
Mais tarde, depois de um banho demorado e confortavelmente instalada em sua poltrona preferida, ela admirava a grossa aliança de ouro. A delicada inscrição dentro dela revelava que Jéssica era a viúva que choraria a morte dele. Com enfado, estendeu a mão e depositou a jóia num pequeno baú decorado com motivos indianos, que já continha quase uma dezena de anéis semelhantes.
Abriu o notebook em seu colo e pôs-se a selecionar, numa rede social, um substituto para seu pai, seu próximo amante, um homem para expurgar os fantasmas de seu passado.



Nenhum comentário:

Postar um comentário