Conto escrito para o 6° Desafio de Escritores, cujo tema era "O Jardim da Delícias", quadro de Hieronymus Bosch.
— Mestre Jeroen, está acordado?
A voz de Margô o despertara no primeiro chamado, porém ele relutava em abrir os olhos; a luz podia ser dolorosa. Tentava, ao mesmo tempo, evitar e manter na mente as imagens que o assombravam desde a noite anterior.
— Mestre Jeroen...
— Sim, Margô, estou acordado.
— Perdão, Mestre, por incomodá-lo, mas é que está aqui um servo da Casa de Nassau e ele diz que seu senhor o mandou perguntar sobre a obra encomendada.
— Diga-lhe que espere. Descerei em alguns minutos.
Margô assentiu e retirou-se.
Jeroen sabia que Henrique de Nassau não tardaria a cobrá-lo pela obra, há muito encomendada e paga. No entanto, estava com sérias dificuldades para produzi-la. “Uma visão nova sobre a humanidade e o sagrado”, pedira Nassau e o que á princípio lhe parecera simples tornou-se um desafio. Como produzir algo novo sobre a velha relação Homem/Deus? A resposta veio por meio de um exótico e incrível objeto, que ele conhecera na taverna um dia antes.
Acordara, naquela manhã, deprimido com a falta de inspiração que o acometia. A verdade é que a incapacidade de pintar o tal quadro começava desesperá-lo. Chegara a fazer alguns esboços, mas eram ordinários, cheios de lugares-comuns, que nada tinham da novidade que o cliente esperava.
Fora Margô quem tivera a idéia de que ele fosse inspirar-se na igreja:
— Vá até lá, Mestre, ore e peça ao Santíssimo que ilumine sua mente.
Jeroen acatara a sugestão, embora sua ida à igreja não fosse com o propósito de orações, mas sim para observar os fiéis. Passou a manhã a contemplar mulheres, senhoras e jovens, que iam se confessar e rezar ajoelhadas diante dos santos. Houve poucos homens, apenas alguns camponeses suplicantes; eram tempos difíceis. Não havia nada novo naquele cenário, nada que lhe rendesse um trabalho original.
Estava prestes a partir, quando ela passou apressadamente em direção ao confessionário, deixando para trás um rastro de aroma almiscarado. A mulher estava totalmente coberta, inclusive seu rosto, escondido por um véu, e o tecido leve de suas vestes deixava evidente o porte esguio e a delicadeza de seus movimentos. Jeroen jamais vira criatura semelhante. Decidiu esperá-la sair, curioso com sua aparência.
Ela demorou-se dentro do confessionário, muito mais que as moças que ele viu entrar ali durante toda a manhã. Que graves pecados estaria contando? Quando saiu, passou por ele indiferente, mas lançou-lhe um olhar furtivo antes de deixar o templo. Ele não pôde resistir à inquietação e partiu em seu encalço. A mulher cruzou a cidade, atravessou um campo de trigo e entrou em uma casa às margens do bosque.
O lugar era uma taverna e estava vazio naquele horário. Jeroen sentou-se em uma das mesas e um homem muito alto veio atendê-lo.
— Boa tarde, senhor. Em que posso ser útil?
— Hã. Bem, eu gostaria de falar com a mulher que entrou há pouco?
— Qual mulher? — perguntou o taverneiro desconfiado.
— A mulher coberta com o véu — respondeu Jeroen.
— Sinto muito, senhor, mas ela não atende neste horário e só trata com clientes especiais.
Jeroen sacou a pequena bolsa de moedas e a atirou sobre a mesa. O homem apanhou-a e sentiu seu peso, devolvendo-a em seguida.
— Vejo que o senhor é um cliente especial, mas terá que esperar até que os outros cheguem.
— Outros clientes especiais?
— Certamente. Venha, por favor.
O taverneiro conduziu-o por um corredor aos fundos do salão. Jeroen temeu que aquilo fosse uma armadilha para assaltá-lo, mas enfim, entraram em uma sala ampla, cujo chão era forrado com peles. Não havia móveis, exceto uma mesa longa e baixa. Espalhados pelo chão estavam dezenas de travesseiros de plumas, cobertos por tecidos finos.
— Sente-se. Trarei algo para beber — disse o homem, deixando-o só.
Jeroen sentou-se diante da mesa e pôs-se a observar o estranho objeto colocado no centro dela. Era uma espécie de vaso adornado, de cuja base saiam quatro tubos. O lugar, apesar de estranho, era extremamente confortável e atraente. Jeroen sentia-se ansioso, embora um tanto assustado.
O taverneiro voltou trazendo um jarro de vinho, uma tigela de frutas frescas e um prato com pão e um tipo de assado. Estava acompanhado por um homem, que se escondia sob um capuz e se sentou do outro lado da mesa, afastado de Jeroen. Não houve qualquer conversa entre eles. Apenas ficaram ali, bebericando o vinho, sem nem mesmo se olharem.
Algum tempo se passou até que o taverneiro retornasse trazendo outros dois homens, igualmente encapuzados. Jeroen percebeu que os demais se esforçavam para não serem vistos; seu rosto era o único a mostra.
— Cheguem mais perto. Vou acendê-lo — disse o taverneiro, aproximando-se do vaso. Ele colocou uma pequena brasa na parte de cima e entregou um tubo a cada um dos visitantes.
— Como é sua primeira vez, sugue devagar, retenha a fumaça por um instante e depois a solte lentamente para não engasgar — disse a Jeroen.
Ele procurou seguir as instruções, mas acabou tendo uma horrível crise de tosse. Em seguida, tentou novamente e teve mais êxito. Logo dominou a técnica e começou a sentir uma agradável sensação de leveza. Seus companheiros também pareceram relaxar, tendo dois deles tirado seus capuzes e avançado sobre a comida.
Jeroen também sentiu uma incontrolável vontade de provar as frutas diante de si. Apanhou uma maçã e essa lhe pareceu extremamente doce e suculenta. A melhor maçã que já provei, pensou, reclinando-se sobre os travesseiros. Percebeu o quanto as cores ali eram intensas, vivas, lindas. Tudo parecia ter uma tonalidade berrante e, ainda assim, bela. Deu outra tragada no tubo e ficou observando enquanto a fumaça subia e se transformava em pássaros multicoloridos, que trinavam um canto suave.
Ele ainda contemplava as aves, quando ela entrou seguida por outras mulheres e alguns músicos. Ao som dos instrumentos, a misteriosa dama se pôs a dançar, sendo imitada pelas outras. Exceto por ela, que vestia uma túnica diáfana e tinha o rosto parcialmente coberto, todas estavam nuas. Balançavam seus corpos diante deles, roçando-os e afastando-se em seguida. Logo, apenas ela dançava, enquanto as demais se ocupavam em despi-los.
Jeroen não conseguia desviar os olhos de sua dança, mesmo enquanto duas mulheres tiravam sua roupa e se esfregavam nele. Ela flutuava, desaparecia e reaparecia, estava em todos os lugares. Alguém colocou o tubo em seus lábios e ele o tragou. Então todas as mulheres da sala eram ela e ela não estava mais lá. Havia mãos e línguas passeando por seu corpo e a sensação era maravilhosa. Deram-lhe uma fruta para comer e mesma explodiu saborosa em sua boca. Seus companheiros também eram atendidos por aquelas ninfas, embora, por um momento, ele tivesse a impressão de que havia alguns jovens nus entre elas.
Corpos se misturavam, enrolando-se nos tecidos, pelo chão, sob os travesseiros. Às vezes, um torso parecia ter múltiplos membros, tamanha era a confusão. Um dos homens já não tinha cabeça, mas uma mulher sentada sobre seus ombros. Não havia mais pássaros, em seu lugar répteis e peixes alados sobrevoavam a sala. Havia o gozo, porém havia algo mais, uma espécie de agonia, de pesar. Remorso, pensou, enquanto se entregava àquele êxtase irresistível.
As mulheres continuavam a acariciá-lo, mas não pareciam de fato estar ali. Algo rastejava pelo chão. Ratos? Insetos enormes? Era impossível saber. Tinha a sensação de que eram observados por olhos severos. O que está errado? O vaso sobre a mesa, agora, era um gigante no centro da sala e, ao seu redor, o mundo se corrompia.
O ambiente estava cheio de um odor acre de sexo, suor e outras secreções. Jeroen quis levantar-se, mas foi forçado de volta ao chão. Alguém lhe deu um pedaço de carne para comer, porém ele foi incapaz de fazê-lo, pois o sabor era de coisa apodrecida. Houve gritos, uma discussão. Ele pensou ter visto alguém puxando uma faca; não tinha certeza. A música, torturantemente alta, feria seus ouvidos. Seres demoníacos tocavam os instrumentos, produzindo um som infernal.
Queria ir embora, contudo merecia todo aquele tormento por ter provado do que havia no vaso; aquele que era a fonte das delícias e o caminho para o inferno. Sentiu-se desfalecer e foi tomado por um sono negro, piedosamente sem sonhos.
Despertou, horas mais tarde, em um quarto simples de hospedaria. Vestiu-se, lavou o rosto e saiu. Percebeu que ainda estava na taverna, no mesmo corredor que o levara àquela sala estranha. Seguiu até o salão principal e lá encontrou o taverneiro, limpando uma das mesas.
— Ora, então o senhor conseguiu por-se em pé sozinho.
— Quanto tempo eu dormi?
— Bem, já é noite alta, mas não se preocupe, lhe emprestaremos um cavalo, mestre Bosch.
— Como... Então sabe quem sou eu?
— Mas é claro. No entanto, recomendo que da próxima vez, não venha a descoberto. Pode ser que outras pessoas o vejam entrar e isso pode não ser muito conveniente.
— Não haverá próxima vez — respondeu Jeroen, lançando-lhe a bolsa de moedas — Fique com todas.
— Grato pela generosidade.
— Deixe-me perguntar, o que era aquele vaso e o que tinha nele?
— Era um hookah ou narguilé. Um presente trazido do oriente pelos cruzados. Quanto ao que tem dentro, esse é um segredo nosso.
Jeroen partiu, com a cabeça ainda a zumbir. Não queria pensar no que havia acontecido, mas as imagens iam e vinham em sua mente e com elas, as mais diversas sensações. Lançou-se na cama, resistindo à tentação de pedir a Margô para preparar-lhe um banho. Adormeceu rápida e profundamente, porém dessa vez os sonhos o fizeram reviver sua bizarra experiência.
Foi acordado por Margô, que anunciava a visita do servo de Nassau. Finalmente, já sabia o que pintar no tal quadro. Será uma visão única da humanidade, pensou, enquanto descia as escadas.
— Meu senhor pede que eu pergunte quando a obra será entregue? — disse o servo.
— Diga a seu senhor que muito em breve. A obra está quase concluída. Será como ele pediu: uma nova visão da humanidade.
— E o sagrado — emendou o servo — Ele pediu que eu o lembrasse: a humanidade e o sagrado.
Droga! E o sagrado?, pensou, esfregando a cabeça dolorida.
— Claro. O sagrado também terá seu lugar — respondeu, dispensando o servo. Subiu novamente as escadas e voltou para a cama. Precisava recuperar-se, pensaria no sagrado mais tarde.
Muito Bom....Sra Denise Andressa.
ResponderExcluirFica o aviso,,,,narguilé sim, mas ópio não,,,rsrsrs
Não vai colocar os crimes da pá aqui não né?...rsrs
Parabéns pelo blog....simples mas bonito.