O dia mal amanhecera, quando ela começou a subir a encosta íngreme do monte. O vento úmido que soprava sobre o caminho fez com que Aung se encolhesse dentro de seu manto, embora o estremecimento que a acometia não fosse totalmente causado pelo frio. Havia nela insegurança, medo e, sim, raiva.
Pensou em quantas vezes fizera aquele percurso, na maioria delas, ao lado do marido. Em algumas ocasiões, carregava a cesta pesada de donativos, noutras, apenas o coração repleto da vontade de ser útil. Nas últimas semanas, no entanto, subia até o mosteiro completamente desprovida de qualquer sentimento de doação; vinha exigir o que lhe fora tomado.
Devia ter suspeitado de que algo estava errado, quando Ban começou a passar mais tempo no mosteiro que no trabalho, mas achara que além da realização espiritual, o marido tentava garantir que o filho fosse aceito como discípulo pelos monges. Pelo menos era essa sua principal intenção. Sentia-se bem, auxiliando nos trabalhos do templo, porém seu maior desejo era que Chui, agora com sete anos, pudesse receber educação no monastério.
Então certo dia, Ban subiu o monte e não voltou mais. Aung fora a sua procura no templo, onde lhe informaram que o marido entrara para a ordem monástica.
— Por quanto tempo? — perguntou chocada.
— Como monge permanente. É sua intenção a busca do Nirvana. — respondeu-lhe um dos iniciados.
Desde então, Aung trilhava o caminho do templo todos os dias, para tentar um encontro com Ban. Não tinha bem certeza do que falaria a ele, mas precisava trazê-lo de volta a realidade; tinham um filho para criar.
Atravessou os portões externos e caminhou até o vestíbulo de entrada, onde o mesmo jovem monge a recebia há dias.
— Gostaria de falar com Ban Ch... — lembrou-se que o marido não adotava mais aquele nome e corrigiu — Mahasi Tera.
— Mahasi ainda não pode receber visitas — respondeu o jovem, com ar pesaroso.
— Por favor, preciso falar com meu marido. Já venho aqui há duas semanas; deve haver um jeito de eu vê-lo.
— Queria poder ajudar, mas Ajahn Bhante não permite que...
— Ora, então chame Ajahn Bhante até aqui para falar comigo — gritou ela.
— Deixe-a entrar, Mun. — falou uma voz suave, na sala além do vestíbulo.
Aung sabia que a voz pertencia a Ajahn Bhante e sentiu-se envergonhada por ter gritado. Ele estava sentado no chão e acenou para que ela se sentasse diante dele.
— Como posso ajudá-la, Aung?
— Venho tentando falar com Ban, mas não tenho conseguido, Ajahn Bhante. Disseram-me que o senhor não permite que...
— Não sou eu quem não permite. Mahasi está em período de reclusão, não pode receber visitas.
— Mas preciso falar com ele — disse, sentindo as lágrimas aflorarem.
— Não, Aung. Isso é o que você quer, não o que precisa.
A paciência na voz do velho monge começou a irritá-la. Aung sentia um nó na garganta, mas não de tristeza e sim de raiva. Contudo, controlou-se e, quando voltou a falar, sua voz era calma.
— Ajahn Bhante, Ban Chu e eu temos um filho e a criança precisa dele.
— Mahasi me garantiu que vocês não passariam necessidades. Estão precisando de alguma coisa?
— Precisamos dele — disse ela, quase em desespero.
—Aung, Mahasi procura alcançar o Nirvana e para isso tem que se desprender dos apegos do mundo. Foi escolha dele, trilhar o Caminho do Meio.
— Nós já trilhávamos o Caminho do Meio.
— Mas você sabe que para alcançar a perfeição é preciso praticar o desapego e isso inclui tudo: desapegar das pessoas, dos bens, das obrigações. A partir de agora, Mahasi vai se preocupar somente em estudar as escrituras, meditar e elevar sua espiritualidade. Você quer impedir isso?
— Quero que ele volte para casa e aja como marido e pai que é.
— Vê? Tudo isso é apego, desejo e lhe aprisiona num ciclo de sofrimento. Você não está pronta para o caminho, mas ele está.
— Não me importa se ele está pronto! Temos um filho e eu não quero criá-lo sozinha.
— A criança poderá unir-se a nós para ser educada, dentro de alguns meses.
— Não quero mais que ele seja educado por vocês — vociferou ela.
— Bem, essa é uma escolha sua, embora eu a lamente. Admita Aung, você não está preocupada com seu filho, está pensando em si mesma. É uma forma de dependência egoísta e isso só a leva ao sofrimento.
— Agora egoísta sou eu? — ela falou com desdém — Não há nada mais egoísta que essa doutrina de vocês.
Os olhos do monge se arregalaram e, quando ele falou, sua voz já não tinha a mesma calma de antes.
— Está questionando nossas Escrituras? Os ensinamentos do próprio Buda?
— Não, estou apenas criticando a maneira hipócrita como vocês o interpretam. O que aconteceria se todos resolvessem buscar o Nirvana? Quem plantaria? Colheria? Limparia? Atenderia suas necessidades? O que seria dos que procuram a perfeição sem os apegados? Quem proveria as doações que os mantém?
— Seu coração está cheio de mágoa que envenena suas palavras. Qualquer pessoa é livre para buscar a libertação, mas nem todas estão prontas para trilhar o Caminho.
— Ainda bem que nem todos estão prontos, não é mesmo? É interessante que sempre haja quem fazer o trabalho pesado. Vocês são proibidos de matar animais, mas aceitam a carne que lhes dão em doação. Por que instruir o caçador, se então ele parará de lhes trazer a caça?
— Ninguém pode carregar outra pessoa ao Nirvana, só podemos mostrar a direção. Quem sou eu para proibir alguma coisa? O caçador sabe que é errado matar, mas se ainda assim ele o faz, não posso recriminá-lo.
— Mas tira proveito do seu erro. Isso me leva a crer, Ajahn Bhante, que o Nirvana não deve ser mesmo para todos.
— Nisso, minha cara, você tem razão. Acho melhor pararmos por aqui, porque vejo que estou colaborando para sua corrupção. Percebo a ira em sua voz.
Aung soltou um suspiro exasperado. No fundo, o monge estava certo, não chegaria a lugar nenhum com aquela discussão. Por fim, falou:
— Ajahn Bhante, dê apenas um recado ao meu marido. Diga-lhe, que se pretende voltar para casa, que o faça antes do final da semana, pois então, meu filho e eu partiremos da cidade. Dirá a ele?
— Se é o que quer, Aung.
— Não é o que quero — respondeu ela, sorrindo ironicamente — mas é o que preciso fazer.
Ela deixou a sala sem olhar para trás. Logo que sua mulher partiu, Ban Chu saiu detrás do biombo, onde estava escondido.
— Você ouviu tudo, Mahasi?
— Sim Ajahn. Eu me preocupo com Aung, você acha que ela ficará em paz?
— Sinceramente espero que sim, embora ela vá levar algumas existências para evoluir. Contudo, muitos nunca chegam à perfeição. O Nirvana realmente não é para todos. Agora vamos, estamos atrasados para os mantras da manhã.
Marido miserável!!!!!!!!!
ResponderExcluirHa ha ha!!!!!!!! Fiquei com raiva dele!!!!!!!