"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



terça-feira, 19 de julho de 2011

Solidão que mata




O inspetor Roberson massageava vigorosamente a têmpora direita. A maldita enxaqueca insistia em enlouquecê-lo. O local estava cheio de gente; peritos, policiais, investigadores, todos se esbarrando no pequeno apartamento. Ele estranhou que não houvesse o odor nauseante das últimas cenas de crime. Talvez aquela nem fosse uma das vítimas de seu serial killer afinal.
Hesitou por um instante à porta, observando a confusão das pessoas lá dentro. Não queria entrar. Aqueles crimes estavam acabando com ele. Poucas pistas, muitas vítimas e a terrível pressão pública cobrando um resultado impossível. Tinha que admitir que o sujeito era esperto. No início, sequer conseguiram ligar as mortes a um mesmo assassino. Fora Roberson quem fizera a conexão. Se aquele caso também fosse um dos seus, seria o nono. 

— Bom dia, Chefe. Difícil pegar um destes logo de manhã, né?
Aquele era Kevin Luther, o novato. Roberson não tinha muita paciência com ele. O garoto era entusiasmado demais e, às vezes, faltava-lhe traquejo com o trabalho.
— Chefe, o senhorio quer saber quando vai poder encaixotar os pertences da vítima. Parece que ele tem um negócio para o imóvel e está com um pouco de pressa.
— Novato, eu ainda nem entrei no apartamento. Não vi a vítima. Nem sei se este é um dos meus casos. Como é que eu vou saber quando o lugar vai ser desocupado? Pelo amor de Deus! O senhorio já foi interrogado? Então, livre-se dele!
Kevin assentiu e se afastou rapidamente. Swannt, um dos detetives da divisão de homicídios, avistou Roberson e foi ao seu encontro.
— E então, Roberson, acha que é uma de suas vítimas?
— Não sei, ainda não a vi. O que pode me dizer sobre ela?
Swannt folheou sua caderneta e respondeu:
— Ela é Margareth O’Donnell, setenta e dois anos, solteira, professora aposentada. Morava sozinha. Foi encontrada pelo senhorio. O yorkshire dela não parava de latir e começou a incomodar os vizinhos, daí ele veio descobrir o que estava acontecendo. A porta estava destrancada, sem sinais de arrombamento e ainda não sabemos se houve roubo.
Swannt acenou para que ele o acompanhasse e se dirigiu à sala. A senhora O’Donnell estava sentada no sofá, com a cabeça inclinada para trás, apoiada no encosto.
— Foi um único golpe, da direita para a esquerda, cortando as duas jugulares. O legista estimou que a morte tenha ocorrido há cerca de trinta e seis a quarenta e duas horas.
Por isso não havia cheiro, o cachorro havia adiantado as coisas. Swannt deu-lhe um tapinha nas costas e se afastou, indo falar com um dos polícias. Roberson aproximou-se do corpo e observou a mesinha de centro diante dele. Sobre ela havia uma xícara de chá pela metade e dois livros manchados de sangue. Além do sofá onde estava senhora O’Donnell, havia uma estante repleta de livros. Roberson passou os olhos rapidamente pelos títulos e suspirou. Sim, aquele podia ser um de seus casos.
— Onde está o novato? — gritou ele.
Imediatamente Kevin apresentou-se, quase lhe batendo continência.
— Sabe me dizer se a senhora O’Donnell tinha computador? — perguntou Roberson.
— Tinha um notebook. Está no quarto, quer que eu o apanhe?
— Não. Peça para a perícia levá-lo e investigar se a senhora O’Donnell fazia parte de alguma rede social ou grupo de discussão, especialmente na área de literatura.
— O senhor acha que a vovó tinha conta no Facebook? — disse Kevin, contendo o riso, mas diante da carranca do chefe, perdeu a graça — Desculpe-me, Chefe. Vou levar agora mesmo.
A cabeça de Roberson explodia de dor; a luz começava a incomodá-lo. Swannt observava-o à distância, penalizado com o estado do amigo. Um caso como o de Roberson era um verdadeiro inferno e a cada nova vítima, um peso a mais era jogado sobre seus ombros. O inspetor era inteligente, mas estava levando uma surra daquele assassino. Aproximou-se dele, querendo dizer algo para ajudá-lo, mas nada do que dissesse poderia fazer diferença.
— O que você acha, Roberson, é uma das suas?
— Acho que sim — suspirou o amigo.
— Ela é um pouco velha demais, não? Tem certeza de que se encaixa no padrão?
— Ah, Swannt, ele não segue um padrão de idade, nem de sexo, nem de classe, nada disso. Se ela for mesmo uma de suas vítimas, é certamente a mais velha, mas isso não tem importância.
— E qual é a ligação entre elas então?
Roberson puxou uma cadeira e se sentou como se estivesse preparando-se para contar uma longa história.
— Todos eles eram solitários, Swannt. Eram pessoas que viviam sozinhas e tinham muito contato com o mundo virtual. Acredito que algumas delas nem se tocavam da solidão em que viviam, por conta de suas atividades na internet.
— Quer dizer que ele as encontra em sites de relacionamento?
— Nem sempre. Acredito que ele procure por pessoas com perfis de solitários; pode ser em fóruns de debates, redes sociais, grupos de discussão, comunidades virtuais. Enfim, a internet oferece diversas opções a ele.
— Mas como ele os reconhece? Quer dizer, ninguém sai dizendo que mora sozinho ou coisas assim. Normalmente, as pessoas não admitem que são solitárias.
— É verdade, mas acho que ele ganha a confiança das vítimas discutindo coisas triviais, demonstrando compartilhar das opiniões ou dos gostos delas. No caso da senhora O’Donnell, creio que a literatura tenha sido o caminho usado por ele. Na estante, há uma coleção invejável de livros raros. Aqueles dois sobre a mesinha são edições valiosas de obras de Blake. Talvez ele a tenha conhecido em alguma comunidade literária virtual e ela tenha mencionado sua coleção. Funcionaria mais ou menos assim: eles começam a conversar, ele se diz um admirador do poeta, ela fica envaidecida e se gaba das edições raras. Mais conversa, ela começa a se sentir à vontade, solta uma particularidade aqui, um detalhe ali, e assim ele vai montando seu perfil.
— Mas isso é muito trabalhoso e no caso, é um tiro no escuro. Tanto ela pode ser uma pessoa sozinha, quanto ter família, casa cheia, vida social agitada.
— E quem disse que ele sonda uma pessoa por vez? Quantas janelas de bate-papo pode-se abrir simultaneamente na tela de um computador? Com quantas pessoas pode-se ter contato ao mesmo tempo?
— Ah, sei lá, Roberson. Talvez esta sua teoria seja meio forçada. Até entendo que ele escolha pessoas que moram sozinhas, porque afinal ter a casa vazia é um facilitador para os crimes. Mas daí supor que ele procura por pessoas solitárias, acho um pouco demais. Há uma grande diferença entre morar sozinho e ser sozinho, concorda?
— Certamente. Mas saiba que, se a senhora O’Donnell for uma de suas vítimas, é a primeira a ser encontrada morta há menos de uma semana. Todas as outras cenas de crime ligadas a ele eram fétidas. O pequeno yorkshire foi um personagem importante neste caso. A terceira vítima tinha um gato, que ficou sozinho no apartamento por doze dias; estava em situação deplorável. Os outros corpos foram descobertos por acaso ou por estarem incomodando os vizinhos com seu mau-cheiro. Eram solitários, sem dúvida. Alguns, como eu disse, talvez nem soubessem disso. A quinta vítima foi Catherine Tunner, encontrada pela diarista, sete dias após sua morte. Em seu velório, estávamos o padre e eu. Apenas nós. Dez dias depois, seu túmulo estava coberto de flores e repleto de mensagens de seus seguidores. Catherine Tunner era uma conhecida blogueira, chamada Dark Jade. Tinha centenas de seguidores e amigos virtuais, que só souberam quem era ela mais de uma semana após seu enterro.
— Bem, meu caro, ainda acho complicada sua teoria, mas se você estiver certo, a rede é um paraíso para ele. É provável até que já esteja à procura de outra vítima.
— Não, Swannt. A esta altura, ele já a encontrou, só a está trabalhando, aguardando o momento certo. Estou numa corrida contra o tempo e ele tem uma boa vantagem sobre mim. A próxima vítima pode ser qualquer pessoa: uma jovem universitária, um homem de meia-idade, uma professora aposentada. Todos estão ligados ao conforto do mundo virtual e esse é o território dele. Quem sabe com quem ele anda relacionando-se agora?
Roberson levou a mão à cabeça que latejava terrivelmente. Apanhou no bolso do casaco um frasco laranja e despejou uma porção de comprimidos na boca. Não tinha certeza de que agüentaria muito mais daquilo. Talvez fosse ele o próximo a sucumbir ao assassino, afinal era também um solitário.

***
Charles travava uma verdadeira batalha com a máquina, tentando revezar-se nas telas que piscavam diante dele. Ainda se atrapalhava com as teclas e o mouse, mas sem dúvida, encantava-se com o mundo que se abrira através do computador. Passou a conhecer lugares e pessoas que jamais teria a chance se não fosse pela maravilha da internet. Abriu a tela de bate-papo com a neta e sorriu satisfeito.

Littlewonder: Hei, vovô, onde vc está?
MasterKey:    Estou aqui. Você é muito agoniada. (risos)
Littlewonder: Tá demorando muito pra responder...
MasterKey:    É que estou jogando xadrez online
Littlewonder: hahahahahaha...
                    Pensei que tava tc com uma namorada
MasterKey:   Que é isso, menina?!
                    Estou jogando com um amigo.
Littlewonder: hahahaha... Tá bom. Vai lá jogar
                     A gente se fala na semana que vem, tá?
MasterKey:    Combinado. Eu amo você, pequena.
Littlewonder: Tb te amo, vovô

Charles fechou a pequena tela e abriu outra.

MasterKey: Desculpe a demora. Onde paramos?
Smartfox:   Cavalo na F5.
MasterKey: Tem certeza?
Smartfox:   Hehehehe... Tenho, sim. Não tente me enrolar.
MasterKey: Está certo. (risos)
                  Sabe, devíamos combinar um jogo de verdade
                  qualquer dia desses.
Smartfox:   Estava para lhe propor isso...
MasterKey: Vamos marcar então. Pode ser na minha casa?
Smartfox:    Será um prazer...


E já que o assunto é solidão...


2 comentários:

  1. Muito bom! Adorei. :) Como sempre!!

    bjos
    pRI

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  2. Ótimo texto, amiga!

    Pena que ser curto... Queria ler mais!

    Beijos!

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