Silas estava sentado no primeiro banco da igreja, bocejando aborrecido. Podia estar largado diante da TV, aproveitando o feriado, não fosse por sua sogra carola, apoiada pela esposa, que o obrigara a acompanhá-las. Tudo bem, viera até ali, esperaria por elas, mas seguir a procissão da “paixão”, isso ele se recusara terminantemente.
Fitava o altar despido de seus ornamentos, enquanto se lembrava da época em que também era católico e acreditava. Não chegara ao ateísmo, mas na juventude sua fé começou a questioná-lo e se tornara inconveniente. Então, ao invés de buscar uma crença mais flexível, ele optara por simplesmente seguir a vida sem religião. Já na faculdade, foi sua vez de questionar a fé e ela lhe pareceu frágil e pouco crível. Silas era professor de matemática há 20 anos e para alguém tão acostumado à exatidão dos números, a fé ficava condicionada a algum tipo de prova.
Levantou-se e caminhou até o nicho que abrigava uma imagem, em tamanho real, de Jesus Cristo. Parou diante dela e começou a conversar:
— Pois é, seus fiéis estão lá fora revivendo a sua crucificação. Eu tinha dúvida se eles eram sádicos ou masoquistas, mas então os vi malhando o Judas num sábado de aleluia e tudo ficou claro.
Silas contemplou a estátua e teve a impressão de que ela o olhava com ar complacente e magoado.
— Olha, não se ofenda. Não é pessoal. Até acho que você deve ter sido um cara legal; gentil com os pobres, bom orador, um verdadeiro líder. Mas o lance de milagreiro, filho de Deus, acho meio forçado. Por que não desceu da cruz então? Quero dizer, tinha uma platéia boa lá; ia converter uma galera. Acabou ressuscitando no mocó, quase sem testemunha? Ora, ponha-se no meu lugar, essa é uma história difícil de engolir. Mas deixe pra lá, eu sou mesmo um cético e cínico. Não me leve a mal, é que comigo vale a máxima do “ver para crer”, entende?
Ele deu um passo para trás assustado, tinha a impressão de que a estátua crescia. Percebeu, tarde demais, que a imagem não estava crescendo, mas caindo sobre ele. Levantou os braços tentando se proteger, porém não conseguiu evitar o baque que o levou ao chão. Abriu os olhos e viu a imagem em pé ao seu lado, estendendo-lhe a mão.
— Minha nossa! Acho que rachei o crânio.
— Tenho certeza de que não — disse a estátua sorrindo.
— Oh, droga! Estou alucinando — gritou Silas.
— Ora Silas, não tenha medo. Só estou aqui para atender o seu pedido.
— Pedido? Que pedido? Não lhe fiz nenhum pedido.
— Claro que fez. Você quer provas, não é? Ver para crer? Disse que queria que eu me pusesse em seu lugar, mas eu tive uma idéia melhor: que tal eu por você no meu?
— Isto não está acontecendo. Jesus não está falando comigo — disse Silas em pânico — Foi a pancada... ou a torta de bacalhau no almoço.
Jesus sorria para ele. Parecia estar se divertindo com seu desespero, quando falou:
— Você vai ter a oportunidade de ser Eu em grandes momentos da minha vida. Selecionei ocasiões especiais, de grandes significados para nós dois.
— Espere um pouco aí...
Jesus o tocou na testa com a mão direita e uma luz muito intensa o cegou por um instante. Quando voltou a enxergar, estava sobre um monte e, diante dele, uma multidão se agitava.
—Mestre! Mestre, o senhor está bem?
O jovem, que mais tarde saberia ser João, o fitava com ar preocupado. Silas olhou para si e se viu vestindo uma longa túnica, sandálias e um manto sobre os ombros. Tocou o próprio rosto e sentiu a barba macia cobrindo-lhe a face. Aquilo não podia ser real. Contudo, o jovem continuava a encará-lo interrogativamente.
— Acho que estou bem — respondeu Silas, estranhando a própria voz.
— Veja Mestre, Felipe trouxe os pães e os peixes que pediu.
Filho da mãe, pensou, Cinco pães e dois peixes, né? Justo o episódio que mais afronta a Matemática.
— E então, Mestre? Podemos distribuí-los? — perguntou-lhe João.
Silas apenas assentiu com a cabeça, em pânico. Precisava fugir dali depressa. Assim, quando os apóstolos se voltaram para Jesus, viram-no descendo a encosta em desabalada carreira. Silas só parou quando chegou à praia. Sentou-se na areia, exausto, pensando em uma explicação lógica para aquela situação. Não encontrou nenhuma.
— Tudo bem — gritou, olhando para o céu — Eu já entendi. Será que agora você pode me levar de volta?
Nada. Apenas o som das ondas quebrava o silêncio. Eu já suspeitava de que não seria tão simples, pensou, contemplando o mar. Silas não se deu conta de quanto tempo havia passado, até que ouviu pessoas se aproximando. Eram seus apóstolos e pareciam contrariados. Ele percebeu que Felipe tinha um olho roxo e que o nariz de um deles sangrava.
— Com todo respeito, Mestre, mas QUE IDÉIA FOI ESSA? — berrou o que tinha o nariz sangrando. Esse era Pedro e estava realmente irritado — A multidão quase nos estraçalhou.
Silas pensou rápido e disparou:
— Homens de pouca fé! Já se esqueceram da história do grão de mostarda?
Os apóstolos fitaram o chão, constrangidos.
— Perdão, Rabi — respondeu Pedro.
Silas suspirou aliviado. A luz voltou a cegá-lo e então ele estava em uma casa abarrotada de gente. Ao longe, ele ouviu alguém aos berros e perguntou a Pedro o que estava acontecendo.
— Estão trazendo um rapaz tomado por um espírito impuro.
— Trazendo pra quê? — perguntou Silas, chocado.
— Para que o senhor o liberte.
— O que? Um exorcismo? Nem pensar! Diga a todos que já fechamos por hoje.
— Mas Mestre...
Silas encarou-o com ar severo. Pedro assentiu e pôs-se a dispersar os presentes. Saiu da casa com os apóstolos a acompanhá-lo. Embora em silêncio, era nítido que estavam incomodados. É melhor me levar de volta antes que eu acabe com sua reputação por aqui, pensou.
Chegaram à praia, onde um barco os aguardava. Mal subiu a bordo, Silas sentiu-se exausto e, aninhando-se nos fundos da embarcação, adormeceu profundamente. Foi despertado por uma agitação. O barco balançava muito e alguém gritava:
— Vamos todos morrer, chamem o Mestre.
Ainda sonolento, Silas ficou em pé e gritou:
— O que está acontecendo aqui? Parem já com esta confusão!
Subitamente, tudo ficou quieto; o vento cessou e as ondas se acalmaram. Os apóstolos estavam admirados, mas não mais que o próprio Silas, que olhava para suas mãos, incrédulo.
Houve então um outro flash e Silas foi levado aos arredores de uma cidade.
— Tudo bem — exclamou — Você é mesmo um milagreiro poderoso e, possivelmente, filho de Deus. Agora, posso voltar?
Nada. Apenas o silêncio.
— Ah, qual é? O que mais você quer de mim? Se está esperando...
Foi aí que percebeu uma caverna, a poucos metros de distância, e, de lá, alguns homens o observavam. Ele começou a se aproximar, quando um cheiro nauseante o atingiu e ele notou as feridas que cobriam os rostos daqueles homens. É lepra, pensou horrorizado, enquanto se afastava andando de costas.
— Mestre, por favor não vá! — gritou um deles — Sabemos quem o senhor é. Suplicamos que nos livre de nosso mal.
— É um teste, não é? — sussurrou — Pois observe.
Silas caminhou até os doentes, sem poder evitar uma careta de nojo e a mão a lhe cobrir o nariz. Tocou-os um a um com a pontinha do dedo e, ao final, estavam todos curados. Os homens dispararam em direção à cidade.
— Então é isso, fiz milagres, curei alguns doentes... Já posso ir embora?
De repente, viu que um dos homens a quem havia curado voltava pelo caminho. Ele se prostrou diante de Silas e disse:
— Obrigado, Senhor! Eu louvarei e darei graças a Deus todos os dias de minha vida.
Naquele instante Silas provou uma agradável sensação que não era de todo nova para ele. Era como o professor que dá aulas a uma turma inteira e sente-se realizado, mesmo que apenas um ou dois cheguem a uma boa faculdade.
Mais uma vez tudo ficou muito claro e ele se viu sobre um burro, sendo aclamado por uma multidão. Finalmente, um momento de descontração, pensou Silas, acenando alegremente às pessoas, que agitavam galhos e ramos como bandeiras.
— Olhe Mestre, lá estão as portas de Jerusalém — disse João.
Ele compreendeu então que aquela era a primeira celebração do Domingo de Ramos e se desesperou.
— Espere — exclamou apavorado, agarrando João pela roupa — Não podemos entrar em Jerusalém.
— Por que não, Rabi?
— Porque lá não é seguro.
— Mestre, se preferir, podemos celebrar a Páscoa em segredo na casa de Gideão.
Silas soltou um suspiro exasperado.
— Até poderíamos, se você não tivesse dito isso na frente dele.
— De quem? Judas?
Judas fitava-os com ar ofendido.
— Deixe pra lá — murmurou Silas, mas assim que João se afastou, ele se aproximou de Judas e lhe sussurrou:
— Abre o olho comigo, que eu te conheço de outras páscoas.
Naquela noite, após a ceia, Silas estava no pátio da casa, sentindo-se angustiado e sozinho, quando Pedro aproximou-se, sentando-se ao seu lado.
— Mestre, o que o está perturbando? Posso ajudá-lo?
Silas balançou a cabeça negativamente.
— Ora Jesus, somos amigos! Sabe que não há nada que eu não faça por você.
— Está dizendo isto agora — disse Silas com ironia.
—Acaso não confia em minha lealdade? Daria a minha vida pela sua.
— Não daria, não, Pedro. Na verdade, muito em breve isso será posto à prova e você vai me dar às costas para salvar a própria pele. Mas não se chateie, porque isso não faz de você um cara ruim, só humano. É o nosso instinto de sobrevivência e sempre nos agarramos a ele em detrimento dos outros, exceto talvez por um filho ou...
Silas olhou para o céu e sorriu.
— É isso, não é? Para um professor basta que um ou dois alunos cheguem à faculdade, mas um pai quer que todos os seus filhos se salvem e, para isso, faz o que for preciso.
O pátio, o jardim e Pedro desapareceram, restando apenas o banco onde Silas estava sentado e, ao seu lado, Jesus Cristo.
— Senhor, finalmente eu compreendi seus motivos e o tamanho de sua obra. Precisei sentir na própria pele, mas enfim eu o entendo e creio.
Jesus parecia distraído e um pouco cansado. Ele então percebeu que Silas o olhava ansiosamente e perguntou:
— Desculpe-me. O que disse Silas?
— Que tive uma epifania. Que agora eu creio — exclamou Silas exaltado — Ora, não foi por isso que resolveu aparecer?
— Hã?... Ah! Não. Eu vim porque não agüentava mais ser você. Resolvi aproveitar a oportunidade para viver as suas experiências e descobri que a sua vida é uma droga. Ensinar os seus alunos é como falar a um bando de fariseus. Seus filhos o negariam sem pestanejar, por um par de tênis novos. Mas o pior de tudo foi aturar a sua sogra. Onde foi que encontrou aquela áspide? Depois do que vivi sendo você, sou eu quem entende os seus motivos.
Silas fitava-o boquiaberto. Jesus, meio sem jeito, passou a mão pelos cabelos e depois pelo rosto. Silas ainda o encarava espantado.
— Que bom — continuou Jesus, batendo de leve no ombro de Silas — Fico feliz em saber que essa nossa aventura tenha trazido a sua fé de volta, embora tenha abalado a minha na humanidade. Está na hora de voltar Silas. Que Deus o acompanhe todos os dias, porque você precisa mesmo Dele.
Silas acordou no chão da igreja. Ao seu lado, a estátua de Cristo jazia em pedaços. Naquele momento, a procissão começava a adentrar o templo; sua sogra encabeçava uma das filas. Ele se pôs em pé, esfregando a cabeça dolorida, e desatou a gargalhar. Não tinha certeza se o que vivera fora real ou não, mas aquilo pouco importava naquele instante. Aproximou-se da imagem quebrada e murmurou:
— Quis bancar o São Tomé, não foi? Pois eu lhe digo que bem-aventurados são os que crêem sem terem visto.
E continuou a rir descontroladamente.
Divertido!!!
ResponderExcluirE agora está mais feliz? A Ana Lu tb já está curtindo seus textos!! :)
bjosss
pRI
Amei o texto!
ResponderExcluirBeijos!