"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A filha do compadre




Mariana estava largada no sofá assistindo à novela, quando o telefone começou a tocar. 
Lá do quarto, José gritou:
—  Mari, atende aí que eu tô acabando de me vestir.
Não houve resposta e a campainha continuou a ecoar no apartamento. 
José soltou um suspiro, calçando os chinelos. Maldita novela, pensou, arrastando-se até a sala. Lançou à esposa um olhar de desprezo que ela ignorou completamente; estava absorta com a cena de discussão na TV.
— Alô.
Sim, é ele.
Oi, Cumpadre. Quanto tempo, hein?
Pois é. Já tem pra mais de três anos, né?
Mariana vai bem. Tá ali assistindo a novela.
A cumadre Elsa também? É... Coisa de mulher.
Eu não! Se ainda fosse um futebolzinho.
É, jogo do Timão eu não perco.
Não, este ano não. O time tá bom. Hahaha...
É mesmo, Cumpadre? O que foi que houve?

Não me diga! Que coisa! É a mais velha?
Mas, e agora?
Sei... Ah, mas vai casar?
Menos mau, Cumpadre.
Não, você tá certo, tem que fazer casar mesmo. Senão fica igual as filhas do Onofre.
Onofre... Aquele que trabalhou com a gente na construtora.
Isso, o baixinho.
Então, as filhas engravidaram e estão lá com os meninos na casa dele.
Casou nada. Uma pouca vergonha! O velho é quem mantém todo mundo.
Não. O Onofre tá na pior.
É, se não fosse essas bolsas que o governo dá, eles iam passar fome.
Eu também acho. É um absurdo o cara viver pendurado no governo, mas esse governo também, né?
Hahahaha... Não Cumpadre, agora a gente pode falar a vontade. Pode xingar o governo pelo telefone sem medo. Hahaha ...
É. Democracia. Mas bom mesmo são as piadas. Hahaha... Já ouviu aquela do presidente e o avião?
Ah, já ouviu? Essa mesmo... Hahahaha...
É, os tempos são outros.
Não. Naquele tempo dava até morte.
Hã? Tô nada. Me aposentei.
Não, não deu o tempo ainda, mas eu sofri um acidente e daí, já me aposentei.
Foi no começo do ano. Caí duma escada e acabei quebrando a perna em três lugares.
É, foi feio mesmo. Eu fiquei meio manco.
Não, quase não dá pra perceber.
Bom, até dava pra continuar, sabe Cumpadre? Mas eu conhecia um sujeito lá na previdência e ele ajeitou a aposentadoria pra mim.
Hahaha... É verdade, tem que aproveitar mesmo.
Meu filho tá bem. Não tá mais morando com a gente, mas fazer o que, né?
Não. Foi pra capital fazer faculdade.
É... É importante pra não virar um Zé Ninguém alienado.
É eu vi. Greve, né?
Não. Falei pro meu menino ficar longe do protesto.
É.  Perigoso demais esse negócio de manifestação! Falei pra ele deixar os outros irem protestar, mas ele é pra ficar em casa.
Não é verdade? Acaba que nem adianta nada.
Pois é, Cumpadre, mas é isso mesmo. Tudo depende da vontade de Deus, não é mesmo?
Tá certo. A gente vai fazer o possível pra ir.
Dia 27, né? Tá bom.
Manda um abraço pra cumadre Elsa.
Será dado... Outro... Tchau.
José desligou o telefone e ficou em silêncio por alguns instantes pensando na conversa que tivera com o compadre. Olhou para Mariana, ainda distraída com a novela. Não queria realmente conversar com ela, mas queria contar o que acabara de ouvir para alguém.
— Ei Mari! Era o cumpadre Moisés no telefone. Sabe a filha mais velha dele? Aquela meio atirada... Pois é, tá grávida e vai casar no final do mês. Que vergonha pro pai, né? Mas aquela menina sempre foi meio dada a vadiagem, não é verdade? O cumpadre também é muito sonso. Pelo menos vai casar... O cumpadre convidou a gente pra festa, acho que a gente devia ir. Vou pedir o carro novo do André emprestado pra não fazer feio na frente do povo.  Aff... Ainda bem que Deus não nos deu uma filha, né? Filha mulher dá trabalho demais.
— Hum hum – respondeu Mariana ao discurso do marido, sem desviar os olhos da TV.
José olhou para ela irritado. Maldita mulher, pensou, e sentou-se ao seu lado para assistir à novela.

2 comentários:

  1. Adoramos! Tive a sensação de que realmente estava escutando uma conversa telefônica. Parabéns! Vou ler os outros.

    Iris e Daniel.

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