Conto escrito para o Desafio de Escritores, cujo tema foi a canção "Wooden Boat".
Foi numa terça ou quarta-feira, não me lembro bem, mas é certo que era um dia de pouco movimento. Ele entrou, bem vestido, embora a gravata estivesse frouxa e o colarinho desabotoado. Nunca o havia visto por ali e fiquei pensando que tipo de cliente ele seria. Tinha por volta dos sessenta anos e parecia cansado, contudo, seus olhos azuis eram atentos, vívidos. Sentou-se na ponta do balcão, longe de onde eu arrumava os copos, e ficou ali, observando-me em silêncio. Cheguei a pensar que ele fosse do tipo calado; daqueles que bebiam um copo após o outro, pagavam a conta e iam embora sem dizer nada. Porém, aqueles olhos pareciam ansiosos demais para pertencerem a alguém quieto.
Levei-lhe um copo e perguntei o que queria para beber. Ele olhou as prateleiras atrás de mim indeciso e deu de ombros. Apanhei uma garrafa de bourbon e lhe acenei com ela, ao que ele assentiu. Servi-lhe uma dose, perguntando se desejava algo mais. Ele sorriu, pegou o copo e sorveu a bebida toda num gole.
— Por gentileza, jovem...
— Amy.
— Jovem Amy, pode deixar a garrafa aqui comigo.
Eu continuei a organizar os copos sob o balcão, ocasionalmente lançando-lhe um olhar de relance. Ele ficou ali por certo tempo, bebericando o bourbon, parecendo perdido em seus pensamentos. Fui pega de surpresa, quando sua voz ecoou pelo bar vazio.
— É uma bela pintura, essa atrás de você. É o Lago Woodmoor?
— Sim, ele mesmo. Conhece a região? — perguntei, querendo manter a conversa.
— Ah, sim. Tenho uma casa às margens do Woodmoor. Quando era pequeno, fui uma criança muito agitada, daquelas que não param quietas um instante, sabe? — começou ele, sorrindo enquanto falava — Então, meu pai costumava me levar para pescar, como forma de treinar minha paciência. E era engraçado, porque, normalmente, eu não conseguia ficar parado por muito tempo, mas quando estávamos no barco, lá no meio do lago, eu sossegava. Gostava da expectativa de não saber quando o peixe ia morder, sabe?
Ele então se calou e seu sorriso esmoreceu. Quando voltou a falar, sua voz continuava firme, mas seus olhos estavam cheios de uma tristeza resignada.
— Acho que paciência é uma virtude que temos que praticar até a morte, não é?
— Bem, acho que sim — respondi, sem muita certeza — Então, você tem uma casa no lago? Que bacana! E é muito longe daqui? Porque não me lembro de tê-lo visto antes.
— Não é muito distante, mas realmente, acho que nunca estive aqui. Não tenho o costume de beber em bares, sabe? A propósito, meu nome é Phil — ele respondeu, estendendo a mão por sobre o balcão.
— Muito prazer, Phil. Então, suponho que seja uma ocasião especial; talvez um dia difícil?
— Ah, jovem Amy, um dia difícil, com certeza. Um dos mais difíceis que já tive.
O telefone começou a tocar e eu fui atendê-lo. Era Mike, meu filho, reclamando da minha falta de tempo para estar com ele. Discutimos rapidamente o fato de eu precisar de dois empregos para poder pagar as contas e acabei prometendo-lhe tirar uma folga na semana seguinte. Desliguei, sentindo um misto de frustração e cansaço.
— Desculpe este velho intrometido, mas suponho que fosse seu filho ao telefone — disse Phil.
— Sim, era ele me lembrando do quanto eu sou uma mãe ruim. Tudo isso por causa de um filme que queria assistir comigo — respondi, sem jeito.
— Ora, não se cobre tanto. A vida faz muito disso com a gente. Às vezes, é impossível não estarmos acelerados. O problema é que, nesta ânsia de chegarmos à frente, grande parte do tempo, atropelamos todo o resto.
— É, mas se eu não correr, a vida é que acaba me atropelando. Gostaria muito de poder tirar uma folga para assistir ao tal filme, mas as contas não saem de férias — eu disse, mas quando levantei o olhar, ele me fitava com tamanha complacência, que continuei: — Ainda terei muito tempo para estar com ele. Isto é uma fase; vai passar.
— Certamente, mas quando esta passar,virão outras. Não se engane, Amy. Num dia, a desculpa é que somos muito jovens. No outro, estamos muito tristes. Mais um pouco e estamos no nosso auge; não podemos parar. Quando por fim nos damos conta, estamos velhos e a vida passou.
Creio que percebeu o meu desconforto com o rumo da conversa, porque imediatamente emendou:
— Qual é a idade do seu garoto?
— Nove anos, mas, às vezes, tenho a impressão de que já é um adolescente de quinze.
Phil soltou uma risada, esvaziando o copo em seguida. Serviu-se novamente e continuou:
— Acredite, você perceberá bem a diferença quando ele realmente estiver com quinze. Lembro-me que, com essa idade, eu estava aprendendo a dirigir. Numa noite, afanei as chaves do carro da minha mãe e fui dar uma volta. Dirigi até o outro lado da cidade, onde morava uma garota pra quem eu já andava espichando os olhos. Parei na frente da casa dela e fiquei ali, esperando, louco para que ela aparecesse e me visse atrás do volante. É claro que era de madrugada e ela não apareceu. Então, peguei o carro e voltei pra casa, um tantinho frustrado, mas também orgulhoso. E o mais engraçado é que, depois disso, eu tive uma dezena de carros, dirigi muitos quilômetros e nada ficou tão marcado na minha memória, quanto aquele passeio no carro da minha mãe. Momentos, Amy, alguns bastante triviais, são as únicas coisas que ficam nesta vida.
Compreendi que aquela pequena história ainda tinha a ver com o telefonema do meu filho; que havia ali uma lição a ser tirada. Porém, antes que eu dissesse qualquer coisa, ele prosseguiu:
— Sabe por que eu estou aqui hoje, Amy, bebendo num bar onde nunca havia entrado antes?
Eu apenas balancei a cabeça negativamente.
— Hoje, eu enterrei a garota que fui ver na noite em que roubei o carro de minha mãe. Parece que foi ontem o nosso casamento. Ela estava linda. No momento seguinte, eu estava assistindo ao nascimento do nosso filho. E quando eu me dei conta, estavam diagnosticando o câncer dela. A minha Christine, a mulher que me tornou o que sou, ia morrer e eu não podia fazer nada. O mais irônico, Amy, é que, então, eu tive que desacelerar. Viemos morar na casa do lago e eu pude treinar minha paciência todos os dias, enquanto esperávamos por sua partida. Garanto a você que era melhor quando eu a praticava naquele barco.
Eu o olhava, atônita, sem saber o que dizer; sentia-me péssima por ele.
— Momentos, Amy, aproveite-os, porque não dá pra saber o quanto eles vão durar — disse Phil, tirando duas notas de cem dólares da carteira e colocando-as sobre o balcão — Fique com o troco. Peça dispensa ao patrão e vá para casa, assistir ao filme com seu menino. Faça desse um momento especial.
Ele se levantou, um pouco vacilante, e caminhou em direção da porta. Não parecia em condições de dirigir, então perguntei:
— Hei, Phil, tem certeza de que consegue chegar em casa? Posso lhe arrumar um quarto no motel, aqui ao lado.
— Está tudo bem, Amy — ele respondeu, apontando para o carro parado no estacionamento — Está vendo aquele velho Mustang vermelho? Ele pode farejar o caminho de volta. Além do mais, eu quero mesmo dirigir. Quem sabe, hoje, Christine resolva aparecer.
Ele acenou em despedida, entrou no Mustang e partiu. Aquela noite jamais saiu da minha mente, nem tampouco as palavras de Phil. Sempre que penso nele, duas imagens me vêm à cabeça: o garotinho sentado no barco, pescando no lago e o Mustang vermelho em chamas, atravessado na pista diante do bar, atingido em cheio por uma carreta. Momentos. Não sei se Christine esperava por ele, naquela noite, ou se Phil partiu à sua procura , apenas me consolo pensando que eles tenham se encontrado
Canção tema:
Dê, não lembro se já tinha lido esse. Mas para variar, eu A-D-O-R-E-I!!!
ResponderExcluirPerfeito!
bjos linda!