"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Carta a Che Guevara


Texto escrito para o Sétimo Desafio de Escritores, cuja tarefa consistia em escrever uma carta a Che falando das atualidades do mundo em relação à luta e os ideais de Guevara.



Companheiro Ernesto,

Surpreendentemente, aos setenta e nove anos, continuo por aqui, respirando, lúcido e consciente de meus atos. Não espere que haja nesta carta um pedido de desculpas. Não é por arrependimento que lhe escrevo, mas por uma súbita necessidade de compartilhar minha frustração. Saiba que, com minha traição, acabei fazendo-lhe um favor. Você se tornou uma personalidade admirada no mundo todo, por pessoas inclusive que jamais o entenderiam se o conhecessem. Soube até que o consideram santo em certos lugares, o que não deixa de ser muito engraçado; a santidade é algo que nunca estaria ao alcance de homens como nós. 
Livrei-o de se tornar uma figura patética, como aconteceu ao seu amigo Fidel. 
Quanto a mim, continuo incógnito, como prometeram os americanos; o serviço secreto deles foi muito eficiente em desaparecer comigo.

Algumas coisas mudaram desde que você se foi;  nem todas as mudanças, no entanto, foram boas. 
O socialismo sucumbiu, como eu já esperava , e a potência soviética também já não existe. Jamais deixei de acreditar no socialismo, mas não creio mais nos homens, sempre cheios de ambições e prontos a tirar proveito dos cargos que ocupam.  Muitas transformações são apenas cascas usadas para esconder velhos vícios. Passei a ter medo da palavra democracia quando pronunciada de modo inflamado sobre um palanque. Em sua defesa , os maiores absurdos têm sido cometidos.
Sentir-se-ia orgulhoso de saber que, após tanta luta pelo direito de trabalho às mulheres, sua Argentina tem uma como governante. Só é uma pena que seu governo seja pífio e que ela tenha sido eleita nas costas do marido populista. O Brasil também tem uma presidenta. Essa, uma ex-revolucionária como nós, sucedeu um ex-sindicalista de esquerda no poder. Porém, a esquerda brasileira se assemelha muito à direita que, por sua vez, está ao centro. Não que sejam centristas moderados, mas parecem equilibrar-se ali no meio, como um bando de putas à espera de quem lhes ofereça mais.
Minha Bolívia tem agora um homem do povo no poder; ele se diz admirador seu. Não entendo bem o que isso significa na prática, pois muito pouco mudou em meu país. Lá, ainda vale o que se tem e tudo pode ser comprado. 
E já que toquei nesse assunto, se me perguntasse se minha traição foi pelo dinheiro, a resposta seria: não só por ele. Seria hipocrisia dizer que o pagamento não foi bom, mas, se eu ainda acreditasse na causa, não o teria feito.
O presidente venezuelano parece ser o único na América do Sul a apresentar um discurso abertamente antiamericano. Mas não se iluda, esse também não passa de um bufão, uma caricatura autointitulada bolivariana, que vomita bravatas e depende dos Estados Unidos para comprar o único produto que sustenta a economia de seu país. É cheio de palavras vazias e ufanistas que não mudam a situação de um povo cada vez mais dependente do assistencialismo.
Sim, os americanos continuam impondo-se, não só na América Latina, mas principalmente, agora, no oriente. Há pouco tempo, executaram, assim com fizeram com você, um líder revolucionário mulçumano. Porém, não acho que o mundo, de modo geral, vá lamentar sua morte e duvido que seu rosto venha a ser estampado em camisetas. Terrorista, não guerrilheiro, embora a diferença possa ser bastante sutil para alguns.
Sabe, Ernesto, acredito mesmo que você tenha sido fiel ao seu discurso, afinal podia ter se acomodado em Cuba, como fizeram companheiros seus, mas preferiu difundir seu ideal. Contudo, hoje, acho que isso não passou de uma tremenda estupidez. Não se pode enfiar nacionalismo goela abaixo de um povo, quando esse povo  não tem o mínimo para viver dignamente. O que é mais cruel, iludir as pessoas com uma realidade falsa ou obrigá-las a viver num inferno real? 
Recentemente, achei muito interessante os ataques à ideia de tutela do paupérrimo Haiti. Falar de soberania em um país onde a população como um todo vive em absoluta miséria extrapola o absurdo. De que adianta lutar pela hegemonia fingida de uma nação e ter que proibir seus cidadãos de a abandonarem, mantendo-os sob um regime de medo, como ocorre em Cuba? Será que a cúpula do partido comunista cubano vive nas mesmas condições de recessão que o povo?
Questões como essas, caro Ernesto, fizeram-me questionar nossa causa na época e angustiam-me até hoje. 
Mas, pensando bem, sinto-me muito melhor agora que desabafei. Já não estou tão incomodado com o fato de meus filhos falarem melhor o inglês que o espanhol. 
Viver despreocupada e descomplicadamente, esse é o segredo, meu amigo.

Fique em paz, Che!

De seu ex-companheiro,
                                   Pablo.
Miami, junho de 2011.

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