Depois
de uma noite terrivelmente longa, o dia enfim amanhecia e a vila continuava
envolta em sombras. A densa neblina, que descera há alguns dias, permanecia,
tornando tudo mais lúgubre. O cheiro da carne queimada ainda impregnava o ar,
embora a fogueira há muito se tivesse extinguido. Thomas Bower achava que
jamais se livraria daquele odor, nem tampouco dos horríveis gritos de Marybeth.
Não
chorara por ela, nem o faria; não tinha esse direito. Não depois de tê-la
arrastado para fora de casa, enquanto ela lhe implorava que acreditasse nela. Muito
menos depois de tê-la entregado aos seus algozes, quando, no fundo, não
acreditava realmente em sua culpa. Covarde era ele e merecia todo o sofrimento
e o remorso que carregava.
Caminhava
apressado através do nevoeiro, seguido de perto pelo jovem William. Mais uma
morte ocorrera na madrugada, sinal de que queimar a bruxa não havia resolvido
os problemas. Então, como principal membro do conselho da vila, coube a ele a
tarefa de ir até a casa, na margem do bosque, buscar as respostas que pudessem
solucionar aquela situação.
—
Quer que eu entre também, Sr. Bower? — perguntou William, parando à porta.
—
Não é preciso, Will — respondeu Thomas, que notara o nervosismo do rapaz —
Espere aqui e fique de guarda. Não me demorarei.
William
assentiu aliviado. Só a proximidade daquele lugar maldito já lhe causava
arrepios. Mesmo eles tendo matado a bruxa, sua maldição permanecia. Desde que o
velho frade falecera, o mal reinava na vila, resultando em mortes horríveis:
infanticídios, assassinatos e suicídios. Ele temia por si e pela mãe, já que
seu pai fora um dos primeiros a sucumbir àquela onda de desgraças. Mas confiava
no Sr. Bower e acreditava que, se alguém podia encontrar uma forma de quebrar o
terrível feitiço lançado por Marybeth, esse seria ele, o único que tivera
coragem de encarar a feiticeira.
Thomas
entrou e foi como se voltasse no tempo. Quase pode vê-la sentada na cadeira que
agora se encontrava tombada à sua frente. Os longos cabelos caindo-lhe sobre os
ombros, os grandes olhos azuis que o fitavam cheios de súplica, enquanto ela
confessava a prática da magia, jurando, porém, que nunca a usara para causar
mal.
—
Mas e quanto aos gatos, Mary? Foi você quem os espalhou pela vila? — ele lhe
perguntara aos berros.
Lembrava-se
de que os primeiros animais apareceram logo após o enterro do frade e se
acomodaram sobre seu túmulo. Eram sempre três, que se revezavam e nunca
deixavam o pequeno cemitério. Dias depois, outros sugiram e foram se
posicionando em frente às casas, de modo que, em pouco tempo, cada morada tinha
um gato postado a sua porta.
—
Fui eu, sim — sussurrara Mary — Mas eram guardiões, não vieram para fazer mal,
só estavam lá para protegê-los.
As
pessoas começaram a se incomodar com a presença dos animais. Os mais radicais
afirmavam que se sentiam vigiados pelo demônio e que os olhos dos gatos eram
janelas para o inferno. Não demoraram a atribuir a culpa de suas presenças a
Marybeth, a quem alguns já acusavam de praticar bruxaria. Na tentativa de
acalmar os ânimos, Thomas comandara a captura dos felinos e, numa das atitudes
mais vis que já tomara até então, os animais foram colocados em sacos e
lançados no rio.
—
A quem eles protegiam no cemitério? — ele perguntara com incredulidade.
—
A ninguém — ela respondera e ele notara que sua expressão subitamente
endurecera — Eles estavam lá para impedir que ele saísse.
Thomas
engolira em seco, temendo a resposta da pergunta que faria a seguir.
—
Impedir que quem saísse, Mary?
—
O frade.
Ele,
então, a agarrara pelos ombros e a sacudira, como que para trazê-la de volta a
realidade.
—
Você enlouqueceu, mulher? O frade está morto!
Ela
o olhara de maneira fria e, quando falara, havia desprezo em sua voz.
—
Seu bom frade era um homem maléfico; cultuava o Mal e praticava a arte das
trevas. Ele tem uma grande dívida e veio coletar as almas de que necessita para
pagá-la. Quando vocês tiraram os guardiões, libertaram-no para cumprir sua
sina.
—
Bruxa blasfema! Você não tem salvação, Marybeth Thompson.
—
Tem que acreditar em mim, Thomas — dissera ela, em tom suplicante — Não sou culpada
pelos horrores que vocês têm vivido. Tudo o que fiz foi tentar ajudá-los. Se
quiserem se proteger, precisam dos guardiões.
E
o que se seguira, Thomas preferia não recordar.
Correu
o olhar ao redor e avistou uma escrivaninha, próxima à lareira, onde havia uma
pequena pilha de livros. Abriu o primeiro deles, cujo título já o fez sentir-se
mal. No alto da página, lia-se: “Encantamentos para Proteção”. Havia várias
páginas marcadas e, em uma delas, Thomas encontrou uma figura que fez seu
coração se apertar. O desenho mostrava três gatos sentados sobre uma sepultura
e, logo abaixo, uma legenda dizia: “Para evitar que um espírito mau saia”. As
demais marcações explicavam como os gatos eram considerados animais sagrados,
tendo a função de guardiões do submundo, e como usá-los na proteção contra
espíritos perversos.
Ainda
folheava o livro, quando um barulho o assustou, fazendo-o arrepiar-se. Algo
arranhava a porta nos fundos da sala. Empunhando a arma que trazia presa à
cintura, Thomas a abriu de supetão e quase abateu a tiro o gato que se
esgueirou por ela.
Com
o coração aos pulos, apanhou o animal, que se esfregava em suas pernas, e notou
que um pedaço de tecido fora firmemente amarrado ao redor de seu pescoço.
Olhando mais atentamente, notou seu monograma, bordado em um dos cantos de um
lenço que lhe pertencia. Confuso e assustado, Thomas voltou a consultar o livro.
Quando encontrou o que procurava, não pode conter-se e chorou; não por
Marybeth, não pela vila, mas por si. Sentia-se o pior dos homens, a mais
ingrata criatura. O livro diante dele ensinava como proteger uma pessoa amada
por meio de um objeto pessoal atado a um guardião.
Thomas
fechou o livro, colocou-o de volta e, levando consigo o gato, saiu da casa de
Marybeth.
William
surpreendeu-se ao vê-lo pálido, entristecido e trazendo no colo um gato preto,
que certamente pertencera à bruxa. Sem pensar, perguntou-lhe ansioso:
—
E então, Sr. Bower, encontrou algo que possa nos ajudar?
A
princípio, William achou que ele não o houvesse escutado, pois permaneceu em
silêncio, com o olhar perdido na névoa diante de si. Mas, em seguida, ele
respondeu, muito calmamente:
—
Não há nada para nós aqui, Will.
Colocando
o gato no chão, Thomas sussurrou, enquanto desatava o lenço de seu pescoço:
—
Não sou digno de seus cuidados, Mary.
E
ficou observando o felino afastar-se e desaparecer em meio às brumas.
Adorei, Denis, adorei...
ResponderExcluirUm abraço!