Embora o dia estivesse frio em São Paulo, Lucas pediu ao taxista para
deixá-lo a dois quarteirões de seu destino. Queria caminhar um pouco, refletir
sobre o telefonema recebido um dia antes. A verdade era que não tinha nenhuma
pressa de chegar ao encontro marcado e ainda se perguntava por que havia
concordado com aquilo. A princípio, pensou que fosse apenas curiosidade, mas
acabou aceitando que havia mais em sua decisão. Ele sabia que aquela história
não estava encerrada e talvez já fosse hora de dar a ela um fim.
Lembrou-se da última vez em que tinham se encontrado, há dez anos,
naquele mesmo local e das palavras de ódio que trocaram. Desde então, não
se falaram mais. Nesse tempo, chegou a acreditar que aquilo já não o afetava, que
havia superado, mas bastou ouvir sua voz ao telefone para que toda a mágoa
viesse à tona.
Passou pelos portões do Cemitério da Consolação e caminhou diretamente
ao lugar combinado, sem dar atenção à arte ou aos turistas que a visitavam
naquele horário. Lucas avistou-o a distancia, hesitando por um instante; ainda
podia dar meia-volta e partir sem ser visto. No entanto, respirou fundo e foi
até ele, notando o quanto seu pai parecia velho e abatido.
— Olá, Edson — disse Lucas.
Edson deu um pequeno salto, assustado, mas em seguida empertigou-se,
estendendo a mão para o filho.
— Olá, Lucas.
Lucas não retribuiu o cumprimento, mantendo as mãos nos bolsos do
casaco. O pai baixou o braço sem demonstrar constrangimento, devolvendo-lhe
apenas um sorriso condescendente.
— E então, Edson, do que se trata e por que aqui?
— Bem, meu filho, acho que já é hora da gente ter uma
conversa, tentar se acertar e eu queria fazer isso diante de sua mãe.
Lucas olhou o jazigo a sua frente e respondeu:
— Não estamos diante da minha mãe, estamos diante de um túmulo. Se
queria dizer algo na frente de minha mãe, devia tê-lo feito enquanto ela ainda
era viva. Se bem que, o que ela tinha já não era vida há muito tempo.
— Ora, Lucas, não vamos começar de novo. Você sabe muito bem
que a doença levou sua mãe e eu nada pude fazer.
Lucas olhava o túmulo, ricamente adornado, enquanto lembranças antigas e
feridas supostamente curadas começavam a aflorar.
— Você a destruiu dia-a-dia, com as humilhações, com sua indiferença.
Você a isolou e ela sucumbiu a isso. A doença apenas pôs fim ao seu sofrimento.
A mulher alegre e inteligente que ela fora outrora já não existia mais.
— Não seja hipócrita, Lucas. Foi você quem saiu de casa e a abandonou.
Tem idéia do que isso fez a ela?
— Eu fui expulso de casa! Eu a defendi e ela resolveu apoiá-lo.
Foi decisão dela ficar ao seu lado e eu a respeitei.
— Você se foi porque quis, não o expulsei.
— É verdade, Edson. Você só disse que aquela era sua casa e que quem não
estivesse satisfeito com seu modo de conduzi-la podia ir embora. Escorraçado
mesmo eu só fui do velório da minha mãe.
— Você estava descontrolado, gritando impropérios, desrespeitando a mim
e a memória dela.
— Eu o estava envergonhando na frente de seus amigos, não é?
Constrangendo-o, como sempre fiz. Não estava descontrolado, apenas não estava
sob seu controle. Perdoe-me por não ser como meu irmão.
Edson soltou um suspiro exasperado.
— Não era bem assim que eu esperava que nosso encontro se desenrolasse,
meu filho. Vamos tentar por as nossas diferenças de lado, construir uma
história nova daqui pra frente.
— E o que acontece com a história antiga? Não dá para simplesmente
fingir que ela não aconteceu, Edson.
— Deixemos o passado onde ele pertence e vivamos o que há pela frente.
Que bem pode nos fazer ficar remoendo antigas mágoas? Sei que você tem um
filho, meu neto, gostaria de conhecê-lo.
— Por que quer conhecê-lo? Nunca se preocupou com o fato de não conhecer
o próprio filho. E o que eu digo ao Marcelo? Ah, já sei: “Olha, meu filho, este
é o seu avô. Você não o conhecia porque seu pai tinha ódio dele, mas agora está
tudo bem, porque o passado ficou para trás.”
— Você tem ódio de mim, Lucas? Por quê?
— Porque você é um filho da mãe egoísta. Porque sempre tratou de nos
diminuir, de nos humilhar, de deixar bem claro que enquanto vivêssemos sob seu
jugo, não teríamos o direito de pensar, de ser gente, de discordar de você.
Sempre nos fez sentir como fardos que você fazia o favor de carregar. Você foi um
marido frio e infiel e um pai ausente e abusivo.
— Eu fiz o meu melhor — sussurrou Edson.
— Pois não foi o suficiente. Para mim, você é um fracasso. Falhou como
pai, como marido e como ser humano. Não deixarei que falhe também com meu
filho.
Lucas deu-lhe as costas, já disposto a partir. Sentia os olhos marejarem
de raiva; precisava afastar-se dele o mais depressa possível.
— Lucas, espere! — gritou o pai — Eu estou doente.
Ele parou indeciso, mas por fim, voltou. Se Edson esperava amolecê-lo
com aquela notícia, estava enganado, pois o efeito fora o inverso. O filho
exibia um sorriso de escárnio e bradou furiosamente:
— Grande, Edson, muito bem! Você passa dez anos sem me procurar e quando
o faz é para me dizer isso? E o que é que você tem afinal?
— Câncer — respondeu Edson, resignado — E já não há muitas esperanças.
— E por que você veio me procurar? Por que não foi atrás do seu
outro filho? Deixe, nem precisa responder. Deve ser porque ele puxou tanto a
você que provavelmente já lhe virou as costas.
—Vim procurá-lo porque esta pode ser a nossa última chance de fazer a
coisa certa e quero mesmo que a gente se dê bem de agora em diante.
— Não, essa é a sua última chance; é você quem está morrendo. Quanto ao
que você quer, desta vez, realmente não importa. Adeus, Edson.
Lucas começou a se afastar, mas Edson o alcançou, agarrando-lhe o braço.
— Você entende que esta pode ser a última vez em que me vê vivo? —
perguntou o pai.
Lucas puxou o braço bruscamente e encarando-o, respondeu:
— Entendo. Provavelmente, nosso próximo encontro será novamente aqui, isso
se eu não tiver nada mais importante para fazer no dia.
Lucas partiu sem olhar para trás. O que sentia era um misto de
frustração e alívio; a sensação de que não havia nada mais a ser dito, de que
estava livre enfim. Á Edson restou observar o filho se distanciar
apressadamente e, com ele, sua última esperança de reconciliação. Não tinha
certeza do que estava sentindo, só sabia que era tarde demais.
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