Conheci
Bucareste numa dessas viagens com amigos, logo após a faculdade, e devo
confessar que, de inicio, não me impressionei com a cidade, que mais parecia
recém saída da Segunda Guerra, tantos eram os monumentos ainda em ruínas. Estávamos
conhecendo o leste europeu e três dias na capital romena me pareceram tempo
demais. Teria sido tedioso, não fosse eu ter descoberto os encantos de
Bucareste; melhor dizendo, os encantos de Anna.
Anna
foi a razão de minha permanência prolongada na Romênia. Depois, tornou-se o
motivo de minhas repetidas visitas ao país. Por fim, levou-me a fazer de
Bucareste meu lar. Hoje, me seria impossível deixar esta cidade.
Casei-me
com Anna e tivemos um filho. Sobre minha família o que posso dizer é que os amo
infinitamente e que nada seria grande o suficiente para nos separar.
Foi
ainda em minha primeira viagem à Europa, que tomei conhecimento de um tipo de
turismo extravagante e muito praticado no velho continente, o turismo tumular. E
o passeio consiste em exatamente isto: conhecer e admirar cemitérios.
Realmente, a idéia não é muito atraente para todos, mas devo dizer que, hoje,
minhas caminhadas noturnas por entre as lápides são quase sagradas. Ah, sim, se
a intenção é a de encontrar espíritos, o melhor horário para um passeio nos
cemitério é à noite, pois só almas terrivelmente atormentadas e perigosas se
mostram durante o dia.
O
primeiro cemitério romeno que conheci não foi o badalado Bellu, nem o inusitado
Cemitério Alegre, mas o pequeno e simples Progressu. Vaguei por várias noites
entre as sepulturas à procura de algum contato, porém após uma semana não havia
visto uma alma sequer. Resolvi então me aventurar no cemitério judaico que
ficava a poucas quadras dali e foi lá que conheci Judith, a aparição mais doce
que já tive o prazer de encontrar.
Judy
era uma garota judia de quinze anos que morrera durante a aliança de seu país
com os nazista e que passava a maioria das noites sentada sobre o próprio
túmulo, apenas observando o mundo ao seu redor. Foi ela quem me contou sobre
como as coisas funcionavam na existência pós-morte e me explicou que, mesmo
para os espíritos errantes, existem regras. Mas Judy, como toda alma penada,
estava presa ao seu próprio suplício. Havia noites em que era simplesmente
impossível conversar com ela, pois, quando se punha a vagar chorando à procura
da mãe, nada era capaz de tirá-la daquele estado.
No
cemitério judaico, conheci figuras incríveis. Havia um casal de comerciantes
que vivera junto por cinquenta anos antes de ser assassinado e que, sempre que
me encontrava, contava como haviam se conhecido e de como fora assustador
encarar a morte. Conheci também um velho usurário que fora sepultado com parte
de suas jóias e que passava todo o tempo afirmando que alguém viria roubá-lo.
Visitei
vários cemitérios, todos os de Bucareste e alguns das redondezas, e encontrei
todo tipo de espírito, desde boas almas, como Judy, até fantasmas rancorosos
que desejavam o mal aos vivos. Todos eles presos à existência entre mundos;
todos com algo a ser resolvido.
Certa
noite, na madrugada do décimo quinto aniversário de meu filho, eu fazia meu
caminho para casa, com a intenção de ser o primeiro dar um beijo de parabéns em
meu rapaz. Ao me aproximar do cemitério judaico, senti uma necessidade absurda
de entrar e ver como estava Judith. Era algo inexplicável; simplesmente uma
urgência repentina. Assim que atravessei os portões, o velho usurário correu em
minha direção bradando em pânico:
—
Eles vieram! Eles finalmente vieram me roubar! Malditos ladrões!
E
assim desapareceu, berrando na escuridão.
Pouco
mais a frente, reconheci a figura de Judy, encolhida e chorando sobre o que restara
de um túmulo, cuja lápide de granito jazia aos pedaços.
—
O que houve, Judy? — perguntei, tomando-lhe as mãos.
—
Eles... Os nazistas... — balbuciou ela, apontando para uma fileira de
sepulturas arruinadas.
Então,
um pouco adiante, percebi três figuras que se ocupavam em profanar e destruir
cada jazigo que encontravam; dezenas deles já tinham sido demolidos. Sem pensar
muito, corri em sua direção, gritando para que parassem. Visivelmente surpresos
em me verem ali, eles me encaram com um misto de temor e duvida.
De
repente um deles pareceu se libertar do estupor e avançou sobre mim, brandindo
o que parecia ser um pedaço de metal. Tentou golpear-me com ele várias vezes,
mas percebendo que não me acertara, tentou fugir, como já faziam seus companheiros.
Tomado por uma força que não sabia que ainda tinha, agarrei-o pela camisa e o
atirei contra um túmulo. Percebi então que ele não passava de um garoto, pouco
mais velho que meu filho. Entristecido, afastei-me e fiquei observando-o,
enquanto ele desaparecia fugindo na escuridão.
Pouco
a pouco, o lugar se encheu de espíritos. Um velho rabino, que eu não conhecia, procurava
acalmar as almas mais desesperadas. Um jovem vestido com uniforme militar
tentava em vão juntar as partes de sua própria lápide. E eu fui ficar com Judy.
Agarrada a mim, ela chorou e soluçou até quase de manhã, quando, por fim,
consegui convencê-la a voltar para sua sepultura, milagrosamente intacta.
Desanimado,
observei que o horizonte leste começava a se tornar alaranjado; eu não veria
meu filho em seu aniversário. Então, pus-me a caminho de volta ao Cemitério
Progressu, onde ocupo há seis anos o jazigo número 323 e de onde saio, com
certa freqüência, para visitar outras almas e zelar por minha família.
Em 2008, um cemitério judaico de Bucareste foi realmente vandalizado. Mais de cem lápides foram derrubadas ou destruídas. Alguns jovens foram presos, dias depois, acusados de terem cometido o crime.
Mandou bem!
ResponderExcluirAbraços,
Moça competente, já virei sua fã!
ResponderExcluirMas que outro texto excelente! A-do-rei.
Abraço.
Gina Girão