Simois
caminhava de um lado para o outro no Pavilhão dos Mortos de Timisoara. Nunca,
em mais de quarenta anos como encarregado responsável pela guarda das almas da Subseção
4, se encontrara em situação tão difícil e absurda. Conferiu mais uma vez o
grande relógio da estação e se desesperou; em menos de meia hora o trem vindo
do Hades chegaria e não havia nem sinal das tais almas desaparecidas.
Houve
um tempo em que o trem partia diariamente do Mundo Inferior, para buscar os
espíritos recém-desencarnados em Timisoara, mas, no pós-guerra, o fluxo de
transportados caíra muito e, por ocasião da grande reforma administrativa
promovida no Hades, em 1950, o novo Departamento de Logística determinou que os
embarques seriam feitos apenas uma vez por semana. Construíram, então, um
pavilhão sobrenatural, logo abaixo da Estação de Trens, onde as almas aguardavam
sua derradeira viagem. Também foi criada a Guarda do Além, cuja função era a de
recolher e evitar que qualquer espírito se
extraviasse de seu destino. E coube a Simois o cargo de Encarregado Chefe da
subseção 4, que compreendia a cidade de Timisoara e redondezas.
Simois
sempre fora considerado muito responsável por seus superiores e contava com a
simpatia de seus subordinados. Gostava de seu trabalho e não nutria pretensões
de ocupar um cargo mais importante. A verdade é que ele evitava chamar atenção
sobre si; mantinha as engrenagens do pós-morte funcionando da melhor maneira
possível e com o máximo de discrição.
Tudo
ia muito bem na subseção 4, até que, em dezembro de 1989, iniciou-se em
Timisoara um levante popular anti-governo. E é claro que, por conta de tais
manifestações, o número de almas coletadas aumentou. Simois, em toda sua
competência, logicamente estava atento a isso e requisitou, via mensageiro, que
a administração do Hades enviasse dois vagões extras para transportar as almas
excedentes, provenientes dos confrontos.
Horas
mais tarde, surpreendeu-se ao receber, das mãos trêmulas de seu ofegante
mensageiro, um documento enviado pelo próprio Alastor, Responsável Chefe pela
Coleta de Almas da Romênia, que dizia:
Caro
Simois,
Recebemos
sua requisição. Informamos que os 20 vagões pedidos já foram providenciados e,
diante das últimas informações, já estamos provisionando um segundo trem, com
50 vagões, para partir até amanhã. Quero tranquilizá-lo quanto a isso, pois, se
preciso for, será autorizada uma segunda viagem.
Gostaríamos
de ter maiores informações da situação na subseção 4 e nos prontificamos, desde
já, a enviar qualquer reforço de material ou pessoal que se fizer necessário.
Aguardamos
seu contato.
Alastor
Responsável
Chefe da Seção 20 – Romênia.
Simois leu e releu o
documento várias vezes tentando entender o que seria aquilo tudo. Vinte vagões?
Segundo trem? Reforços? Que últimas informações eram essas? Alguma coisa dentro
dele dizia que algo muito ruim estava para acontecer; a reviravolta em seu
estômago era um sinal clássico. Dentro do pavilhão, se pôs ele mesmo a contar
as almas e, ao final, estava ainda mais confuso. Eram cento e quarenta e dois
espíritos: noventa e sete vítimas dos confrontos e quarenta e cinco mortos pelas
mais diversas causas. Quatro vagões seriam mais que suficientes e, visto que o
trem costumava puxar dois vagões habituais, apenas dois extras resolveriam a
questão. Numa conta rápida, Simois calculou que a administração estimava a
chegada de cerca de cinco mil almas. Cinco mil! Por Zeus, de onde haviam tirado
aquele número?
Começando a se
desesperar, decidiu que o melhor era fazer uma ligação direta para o Hades e
esclarecer de uma vez aquela confusão. Ao caríssimo custo de duas almas,
conseguiu uma chamada para o gabinete de Alastor e, enquanto aguardava ser
atendido, pensava que aquela era a primeira vez que falava diretamente com a
administração em quarenta anos.
— Simois, meu rapaz,
estava aguardando sua ligação — disse Alastor com entusiasmo — E então, como
estão as coisas por aí?
— Bem, eu acho — respondeu
Simois — Senhor, eu quero me desculpar por estar ligando, mas é...
— Ora, filho, eu não me
dispus a ajudá-lo? Estamos aqui para isso. Do que você precisa? Mais guardas? O
primeiro trem deve chegar aí por volta da meia noite e o segundo sai amanhã de
manhã, certo? O próprio Tânato se comprometeu a disponibilizar mais recursos. Estamos
todos preocupados com sua situação. Está conseguindo acomodar todo mundo no
pavilhão?
— Sim, senhor, estão
todos no pavilhão, mas eu não sei do que estamos falando. Os recursos que tenho
são mais que suficientes para o número de mortos que estão sob minha guarda. Só
são mesmo necessários dois vagões extras no trem da meia noite.
— Ora, Simois, você
enlouqueceu? Como planeja acomodar cinco mil almas em quatro vagões?
— É justamente isso que
não sei explicar, senhor. Eu tenho agora, no pavilhão, exatamente cento e
quarenta e duas almas. De onde vocês tiraram o número de cinco mil? — perguntou
Simois, pressentindo que a resposta não seria afável.
Do outro lado, Alastor
prendeu a respiração por um instante, sem saber o que dizer e, então, com uma voz
fria, começou:
— De onde eu tirei esse
número? Deixe-me pensar, por que eu acharia que há cinco mil almas na subseção
4? — e então trovejou — Será por que todo o Mundo está noticiando o Massacre de
Timisoara, no qual mais de cinco mil pessoas já foram mortas?
— Mas, senhor, os
mortos no confronto foram apenas noventa e sete e...
— Seu imbecil! Está me
dizendo que perdeu cinco mil almas? — berrou Alastor.
— Não, senhor, estou
dizendo que nunca houve cinco mil almas, são apenas...
— Nunca houve? — falou Alastor
cinicamente — E o que eram aqueles quatro mil e seiscentos corpos que foram
encontrados há pouco numa vala, na SUA subseção?
Simois já sentia as
mãos e pés gelados. Como era possível aquilo tudo estar acontecendo e ele não
saber nada a respeito?
— Senhor, eu realmente
não sei o que está havendo, mas vou tentar descobrir. Como o senhor ficou
sabendo das mortes?
— Simois, está em todos
os canais — disse Alastor, tentando não gritar — Procure uma TV. O Mundo
inteiro só fala nisso. O Massacre de Timosoara é noticiado o tempo todo e em
todos os idiomas. Agora, levante seu traseiro e bote os inúteis dos seus
guardas para procurar cada uma dessas almas perdidas, porque, se você não me
der conta das cinco mil, vou lhe arrumar um cargo de raspar lama, no mais
profundo do Tártaro. Compreendeu?
— Sim, senhor —
respondeu Simois, sabendo que qualquer discussão seria inútil.
E ali estava ele,
andando de um lado para o outro, aguardando a volta de seus homens, mas sem
nenhuma esperança de sair inteiro daquela situação.
Pouco antes da
meia-noite, os guardas do Além voltaram e, pelos semblantes consternados, as
notícias não podiam ser boas.
— Sr. Simois — falou um
dos guardas — reviramos cada palmo da cidade, percorremos todas as vilas e
fazendas da região e não encontramos nada. Ninguém sabe de nenhuma alma que
possa ter fugido, quanto mais cinco mil delas!
Simois suspirou
desanimado e, olhando para o relógio, soube que não havia nada mais a ser
feito. Quando o trem chegou, ele acompanhou o embarque das cento e quarenta e duas
almas e depois se juntou a elas, a caminho do Hades.
***
Alguns meses depois,
Alastor cochilava atrás de sua mesa, quando Níobe, sua assessora, entrou de
supetão.
— Alastor, você viu o
que aconteceu? — perguntou ela, muito agitada.
— Depende do que
aconteceu, Níobe — ele respondeu espreguiçando-se — O que houve?
— Acabaram de desmentir
o Massacre de Timisoara — respondeu ela.
Alastor afundou na
cadeira, já sentindo um frio subir lhe pelas pernas.
— Como assim
desmentiram?
— Passou há pouco na
TV, admitiram que o massacre foi uma encenação para manipular a imprensa
internacional.
— Como assim? —
perguntou Alastor apavorado — Ninguém foi checar a veracidade de tudo aquilo?
Níobe soltou um suspiro
e respondeu:
— Checaram tanto quanto
nós. O que vamos fazer Alastor?
— Nós? Nada — disse ele,
empertigando-se — Por que faríamos alguma coisa?
— Ora, porque o pobre
Simois está no Tártaro e...
— E lá ficará, dona
Níobe. É ele ou eu — disse — Além do mais, nem sabemos se essa notícia é mesmo
verdadeira.
— Mas Alastor...
— Nada de mas! A gente
tem que aprender a não acreditar em tudo o que dizem na TV. E agora, me faça um
favor, mude de canal.
O Massacre de Timisoara foi noticiado exaustivamente por agências internacionais de notícias do mundo todo, em dezembro de 1989. Imagens chocantes de centenas de corpos, exumados de valas comuns, de vítimas, na maioria civis, foram exibidas pela imprensa estrangeira e pressionaram a queda e condenação do ditador romeno. Nenhuma fonte era citada, nada foi averiguado. No ano seguinte, a farsa montada pelos revolucionários romenos foi admitida. O Massacre de Timisoara jamais aconteceu.
Sensacional!
ResponderExcluireu estava prestes á dar os parabéns á toda competente administração do submundo, quando no desfecho, me deparo com uma terrível "queima de arquivos", rsrrs. Em verdade temos de admitir, cara escritora e amiga Denise: o mais importante no imaginário político é a hierarquia. E parece que isso vale também para a administração do inferno...rsrs.
ResponderExcluirParabéns pelo maravilhoso texto, amiga. E também pela informação na qual vc tomou como base; eu não sabia nada á respeito do inverídico "Massacre de Timissoara".
Bjs!!!!