"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



sexta-feira, 4 de maio de 2012

Simois e o Massacre de Timisoara

Existe uma antiga lenda romena, que fala de um trem de mortos que parte da Estação de Trens de Timisora levando almas para o Hades.




Simois caminhava de um lado para o outro no Pavilhão dos Mortos de Timisoara. Nunca, em mais de quarenta anos como encarregado responsável pela guarda das almas da Subseção 4, se encontrara em situação tão difícil e absurda. Conferiu mais uma vez o grande relógio da estação e se desesperou; em menos de meia hora o trem vindo do Hades chegaria e não havia nem sinal das tais almas desaparecidas.
Houve um tempo em que o trem partia diariamente do Mundo Inferior, para buscar os espíritos recém-desencarnados em Timisoara, mas, no pós-guerra, o fluxo de transportados caíra muito e, por ocasião da grande reforma administrativa promovida no Hades, em 1950, o novo Departamento de Logística determinou que os embarques seriam feitos apenas uma vez por semana. Construíram, então, um pavilhão sobrenatural, logo abaixo da Estação de Trens, onde as almas aguardavam sua derradeira viagem. Também foi criada a Guarda do Além, cuja função era a de recolher  e evitar que qualquer espírito se extraviasse de seu destino. E coube a Simois o cargo de Encarregado Chefe da subseção 4, que compreendia a cidade de Timisoara e redondezas.

Simois sempre fora considerado muito responsável por seus superiores e contava com a simpatia de seus subordinados. Gostava de seu trabalho e não nutria pretensões de ocupar um cargo mais importante. A verdade é que ele evitava chamar atenção sobre si; mantinha as engrenagens do pós-morte funcionando da melhor maneira possível e com o máximo de discrição.
Tudo ia muito bem na subseção 4, até que, em dezembro de 1989, iniciou-se em Timisoara um levante popular anti-governo. E é claro que, por conta de tais manifestações, o número de almas coletadas aumentou. Simois, em toda sua competência, logicamente estava atento a isso e requisitou, via mensageiro, que a administração do Hades enviasse dois vagões extras para transportar as almas excedentes, provenientes dos confrontos.
Horas mais tarde, surpreendeu-se ao receber, das mãos trêmulas de seu ofegante mensageiro, um documento enviado pelo próprio Alastor, Responsável Chefe pela Coleta de Almas da Romênia, que dizia:

Caro Simois,
Recebemos sua requisição. Informamos que os 20 vagões pedidos já foram providenciados e, diante das últimas informações, já estamos provisionando um segundo trem, com 50 vagões, para partir até amanhã. Quero tranquilizá-lo quanto a isso, pois, se preciso for, será autorizada uma segunda viagem.
Gostaríamos de ter maiores informações da situação na subseção 4 e nos prontificamos, desde já, a enviar qualquer reforço de material ou pessoal que se fizer necessário.

Aguardamos seu contato.
                   
Alastor
Responsável Chefe da Seção 20 – Romênia.
Simois leu e releu o documento várias vezes tentando entender o que seria aquilo tudo. Vinte vagões? Segundo trem? Reforços? Que últimas informações eram essas? Alguma coisa dentro dele dizia que algo muito ruim estava para acontecer; a reviravolta em seu estômago era um sinal clássico. Dentro do pavilhão, se pôs ele mesmo a contar as almas e, ao final, estava ainda mais confuso. Eram cento e quarenta e dois espíritos: noventa e sete vítimas dos confrontos e quarenta e cinco mortos pelas mais diversas causas. Quatro vagões seriam mais que suficientes e, visto que o trem costumava puxar dois vagões habituais, apenas dois extras resolveriam a questão. Numa conta rápida, Simois calculou que a administração estimava a chegada de cerca de cinco mil almas. Cinco mil! Por Zeus, de onde haviam tirado aquele número?
Começando a se desesperar, decidiu que o melhor era fazer uma ligação direta para o Hades e esclarecer de uma vez aquela confusão. Ao caríssimo custo de duas almas, conseguiu uma chamada para o gabinete de Alastor e, enquanto aguardava ser atendido, pensava que aquela era a primeira vez que falava diretamente com a administração em quarenta anos.
— Simois, meu rapaz, estava aguardando sua ligação — disse Alastor com entusiasmo — E então, como estão as coisas por aí?
— Bem, eu acho — respondeu Simois — Senhor, eu quero me desculpar por estar ligando, mas é...
— Ora, filho, eu não me dispus a ajudá-lo? Estamos aqui para isso. Do que você precisa? Mais guardas? O primeiro trem deve chegar aí por volta da meia noite e o segundo sai amanhã de manhã, certo? O próprio Tânato se comprometeu a disponibilizar mais recursos. Estamos todos preocupados com sua situação. Está conseguindo acomodar todo mundo no pavilhão?
— Sim, senhor, estão todos no pavilhão, mas eu não sei do que estamos falando. Os recursos que tenho são mais que suficientes para o número de mortos que estão sob minha guarda. Só são mesmo necessários dois vagões extras no trem da meia noite.
— Ora, Simois, você enlouqueceu? Como planeja acomodar cinco mil almas em quatro vagões?
— É justamente isso que não sei explicar, senhor. Eu tenho agora, no pavilhão, exatamente cento e quarenta e duas almas. De onde vocês tiraram o número de cinco mil? — perguntou Simois, pressentindo que a resposta não seria afável.
Do outro lado, Alastor prendeu a respiração por um instante, sem saber o que dizer e, então, com uma voz fria, começou:
— De onde eu tirei esse número? Deixe-me pensar, por que eu acharia que há cinco mil almas na subseção 4? — e então trovejou — Será por que todo o Mundo está noticiando o Massacre de Timisoara, no qual mais de cinco mil pessoas já foram mortas?
— Mas, senhor, os mortos no confronto foram apenas noventa e sete e...
— Seu imbecil! Está me dizendo que perdeu cinco mil almas? — berrou Alastor.
— Não, senhor, estou dizendo que nunca houve cinco mil almas, são apenas...
— Nunca houve? — falou Alastor cinicamente — E o que eram aqueles quatro mil e seiscentos corpos que foram encontrados há pouco numa vala, na SUA subseção?
Simois já sentia as mãos e pés gelados. Como era possível aquilo tudo estar acontecendo e ele não saber nada a respeito?
— Senhor, eu realmente não sei o que está havendo, mas vou tentar descobrir. Como o senhor ficou sabendo das mortes?
— Simois, está em todos os canais — disse Alastor, tentando não gritar — Procure uma TV. O Mundo inteiro só fala nisso. O Massacre de Timosoara é noticiado o tempo todo e em todos os idiomas. Agora, levante seu traseiro e bote os inúteis dos seus guardas para procurar cada uma dessas almas perdidas, porque, se você não me der conta das cinco mil, vou lhe arrumar um cargo de raspar lama, no mais profundo do Tártaro. Compreendeu?
— Sim, senhor — respondeu Simois, sabendo que qualquer discussão seria inútil.
E ali estava ele, andando de um lado para o outro, aguardando a volta de seus homens, mas sem nenhuma esperança de sair inteiro daquela situação.
Pouco antes da meia-noite, os guardas do Além voltaram e, pelos semblantes consternados, as notícias não podiam ser boas.
— Sr. Simois — falou um dos guardas — reviramos cada palmo da cidade, percorremos todas as vilas e fazendas da região e não encontramos nada. Ninguém sabe de nenhuma alma que possa ter fugido, quanto mais cinco mil delas!
Simois suspirou desanimado e, olhando para o relógio, soube que não havia nada mais a ser feito. Quando o trem chegou, ele acompanhou o embarque das cento e quarenta e duas almas e depois se juntou a elas, a caminho do Hades.

***
Alguns meses depois, Alastor cochilava atrás de sua mesa, quando Níobe, sua assessora, entrou de supetão.
— Alastor, você viu o que aconteceu? — perguntou ela, muito agitada.
— Depende do que aconteceu, Níobe — ele respondeu espreguiçando-se — O que houve?
— Acabaram de desmentir o Massacre de Timisoara — respondeu ela.
Alastor afundou na cadeira, já sentindo um frio subir lhe pelas pernas.
— Como assim desmentiram?
— Passou há pouco na TV, admitiram que o massacre foi uma encenação para manipular a imprensa internacional.
— Como assim? — perguntou Alastor apavorado — Ninguém foi checar a veracidade de tudo aquilo?
Níobe soltou um suspiro e respondeu:
— Checaram tanto quanto nós. O que vamos fazer Alastor?
— Nós? Nada — disse ele, empertigando-se — Por que faríamos alguma coisa?
— Ora, porque o pobre Simois está no Tártaro e...
— E lá ficará, dona Níobe. É ele ou eu — disse — Além do mais, nem sabemos se essa notícia é mesmo verdadeira.
— Mas Alastor...
— Nada de mas! A gente tem que aprender a não acreditar em tudo o que dizem na TV. E agora, me faça um favor, mude de canal.



O  Massacre de Timisoara foi noticiado exaustivamente por agências internacionais de notícias do mundo todo, em dezembro de 1989. Imagens chocantes de  centenas de corpos, exumados de valas comuns, de vítimas, na maioria civis, foram exibidas pela imprensa estrangeira e pressionaram a queda e condenação do ditador romeno. Nenhuma fonte era citada, nada foi averiguado. No ano seguinte, a farsa montada pelos revolucionários romenos foi admitida. O Massacre de Timisoara jamais aconteceu.

2 comentários:

  1. eu estava prestes á dar os parabéns á toda competente administração do submundo, quando no desfecho, me deparo com uma terrível "queima de arquivos", rsrrs. Em verdade temos de admitir, cara escritora e amiga Denise: o mais importante no imaginário político é a hierarquia. E parece que isso vale também para a administração do inferno...rsrs.
    Parabéns pelo maravilhoso texto, amiga. E também pela informação na qual vc tomou como base; eu não sabia nada á respeito do inverídico "Massacre de Timissoara".
    Bjs!!!!

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