"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Meus pensamentos?



No ano de 2147, diante da grave crise ambiental e do iminente colapso da humanidade, um conselho mundial, constituído por grandes líderes e cientistas, aprovou a implantação do chamado Projeto Íris.
O projeto tinha como objetivo a criação de um software avançado que pudesse avaliar riscos e traçar diretrizes para as ações humanas, de modo a garantir a preservação não só do planeta como do próprio homem.
Com o tempo, Íris ou a Máquina, como era conhecida, apresentou tão bons resultados e ganhou tal importância, que deixou de apenas sugerir e passou a tomar decisões por seus criadores.
Em 2191, a Máquina assumiu o controle sobre o próprio funcionamento, mantendo como principal diretriz o bem estar dos seres humanos e a constituição de uma sociedade global que garantisse a felicidade para TODOS.


Cidade de Cluj-Napoca, Romênia, 2233.


Eu poderia matá-lo agora. Poderia? A Máquina já vai acordá-lo. O relógio... Que horas são?

Bom dia, Ioana.
Bom dia, Cosmin.


E não são bons todos os dias dessa sua vida? O sorriso. Ele sabe que é de mentira. É claro que sabe. Ontem ele também sabia; eu nem me esforcei em fingir. Mas ele não disse nada. Também não parou. Foi até o fim. Fez o que a Máquina espera. Gozou? Pareceu que sim. E o beijo. Que nojo! Eu queria matá-lo. Queria!

Não vai se levantar, querida?
Vou, sim. Claro.

Vou, como todos os dias. O sorriso plástico. Ele sabe. Está me olhando estranho. Vai contar a alguém. Vai me fazer procurar a Máquina. Não posso. Um beijo.

Vou ver o que temos pro café.

Parece mais tranquilo. Eu finjo, ele também pode fingir. Ele sabe. Tenho que me esforçar. Um assunto qualquer, algo leve. Maldita comida pronta! Tudo tem o mesmo gosto, o mesmo cheiro. A Máquina nos dá o que precisamos. Mais proteína, menos gordura. Bandeja branca para mim, bandeja verde para ele. Quente... fria... tanto faz. Ele gosta da dele morna.

O que temos hoje?

Que susto! Chegou tão sorrateiro... Ele desconfia, eu sei.

Hã? Ah! Temos N15 para mim e N22 para você...
Amor?!
Ai, me desculpe. Suflê de cottage e Torta de peru.

Ai, que estúpida! O que há comigo? Se ele não percebeu, vai perceber... Um sorriso.

O que há, querida? Você não me parece bem.
Não. Estou, sim. Só um pouco cansada.
Não tem dormido? Talvez seja bom repetir seus exames.

Não! Não posso! Não posso passar pela Máquina de novo. Vão me obrigar a fazer o tratamento. Ionela não estava bem e teve que fazer o tratamento. A Máquina disse que ela precisava. E agora... Bem, Ionela agora é feliz. Todos são. Menos eu. Porque eu vejo. Vejo o que a Máquina faz com as pessoas. Não posso. Não quero ser... O que? Feliz? Não. Não quero ser cega.

Não. Não é nada demais. É só que tenho pensado muito em minha avó. Sinto falta dela.

Que mentira! Nem sei como isso me veio à cabeça. Há meses não me lembrava de minha avó. Olha a cara do idiota. Complacente. Quase feliz, pensando que sofro pela falecida. A única tristeza tolerada pela Máquina: o luto. Ideia genial. Pobre vovó.

Oh, Ioana, sei que sente saudades, mas isso não deixa de ser bom. É sinal de que você guarda boas lembranças dela.

Bom. Tudo é muito bom. Ter saudades é bom. Fazer dieta é bom. Suflê de cottage é bom. Meu Deus, como eu queria matá-lo! Deus... Agora, sim, lembrei-me de minha avó. O tercinho que ela carregava. “Deus tudo vê”. A Máquina também. “Deus só quer o nosso bem”. A Máquina também.  “Deus é todo poderoso”. A Máquina também. Talvez a Máquina seja Deus. Não. Nós criamos a Máquina. E Deus... Nós criamos Deus? Nós certamente destruímos Deus. Então, talvez Deus seja a Máquina. Ele fez com que criássemos a Máquina e nos tirou o livre-arbítrio.

Bem, querida, vou indo. Tem certeza de que vai ficar bem? Posso marcar um horário com o doutor Nicolai...
Não acho necessário. Estou bem.
Então, até mais tarde.

Ele é outro agora; ficou satisfeito com minha resposta. Não sabe de nada. Suspeitava, mas é idiota demais para ver. Vou levá-lo à porta. Um beijo. Lá está Ionela. Sinto saudades. Saudades de Ionela, não dessa hiena falsa que ela se tornou. Grávida. Acho que já está pelo sétimo mês. A Máquina disse que já era hora. “Estou na idade certa” ela falou, arreganhando os dentes. Coitada. E se a Máquina disser que eu devo ter um filho? Não. Não quero. Prefiro morrer a ter um filho de Cosmin. “Suicidas vão para o inferno”. O inferno não existe mais. A Máquina não pune os suicidas.  Então ainda nos resta a liberdade de morrer. Deus não permitia. Deixe-me ver a lista de tarefas. Certo... Certo... Certo... Só o de sempre. Hoje o canal disponível é o 4. O que passa no canal 4 afinal? Ecossistemas em Extinção. Lindo! Fique aí cuspindo informações sobre as borboletas da Malásia. A Máquina se preocupa com a preservação do ambiente. É preciso nos engajar em causas produtivas. Danem-se as borboletas! Por que não extinguir os humanos? Talvez a Máquina seja sádica. Sadismo é coisa dos homens. A Máquina não é má, só se preocupa demais. Nos controla porque se preocupa? Talvez... Não! Será? Que estupidez, é claro que não! Mas tem que haver um motivo. Por que nos manter vivos e sob controle quando seria mais fácil se livrar de nós? Deve haver uma razão. A Máquina é só razão. E se descobrirmos o porquê, talvez possamos dar cabo dela. E o que teremos? Liberdade? Insatisfação? Tristeza? Inveja? Violência? Não, humanidade. E isso seria bom? Não precisa o homem de algo que o tutele? Deus... A Máquina... Teremos as leis. Mas isso também já falhou. Talvez a Máquina seja um mal necessário. Talvez eu só esteja mesmo cansada. O que estará passando agora no canal 4? Pandas! Acho tão lindos...
***
Centro de Processamento de Dados do Controle de Humanos – Projeto Íris
Relatório Diário – 12/07/2233.
 
Leitura de Implante Neurossináptico
Nome: Ionela Lucescu
Idade: 31 anos
Grau de resistência: 11%
Status: Fase 9 em andamento.
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Leitura de Implante Neurossináptico
Nome: Cosmin Popa
Idade: 39 anos
Grau de resistência: 2%
Status: Fase 15 concluída.
Leitura de Implante Neurossináptico
Nome: Ioana Popa
Idade: 33 anos
Grau de resistência: 64%
Status: Fase 4 concluída. Apta para fase 5.
 


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