Mauro abriu os olhos e fitou o teto. O quarto era escuro e abafado, apenas uma luz difusa penetrava pelas frestas das janelas. O velho colchão, onde estava deitado, exalava um odor azedo e enjoativo. Não sabia como chegara ali. O pânico começou a querer dominá-lo, mas o peso à direita de seu quadril o fez sentir-se seguro. Levou a mão até o coldre e palpou a 9mm.
Sentou-se, analisando o lugar e surpreendeu-se ao notar a mulher do outro lado do quarto. Estava nua e os cabelos escuros contrastavam com a brancura de sua pele. Pareceu-lhe vagamente familiar. Quando ela se aproximou, ele soube onde já havia visto aquele rosto e porque não o reconhecera de imediato: nas fotos que vira dela, seu rosto estava transformado pela morte.
Pôs-se em pé afastando-se, enquanto ela continuava a avançar em sua direção. Quando falou, sua voz era rouca e entrecortada:
— Tá com medo de mim, doutô? Tenha não. O senhor não se lembra do nome, né? Por que havia de lembrar? Sou só mais uma puta morta no Rio. Quantas o senhor já viu no seu trabalho? Foi por isso que o senhor não investigou? Por que eu era puta?
Agora ela estava muito próxima e Mauro podia ver as marcas arroxeadas em seu pescoço, seus olhos congestos e a boca pendendo frouxa enquanto ela falava. Ele não sabia o que dizer. Lembrava-se vagamente do caso: o corpo encontrado numa lixeira em Bonsucesso. Realmente não dera importância ao assassinato da prostituta viciada em crack. Esse tipo de investigação era sempre perda de tempo.
— Se o senhor tivesse investigado, talvez ele não tivesse matado elas duas.
Então Mauro viu outras duas mulheres nuas saindo das sombras do quarto.
— Vocês só investigaram quando ele matou a gringa, né? Ele achou que ela era puta também. Mas ela não era e daí cês pegaram ele. Tá preso. Porque matar turista não pode, é crime.
As mulheres continuaram avançando e Mauro encolheu-se assustado. O que poderia dizer? Como se explicar? Ocorreu-lhe então, que aquilo era loucura. Estavam mortas, não podiam ser reais. Contudo elas continuavam ali, encarando-o, como se a espera de uma resposta.
— O que é isto afinal, um pesadelo medonho? — disse ele, com a voz embargada — O que vocês querem de mim?
As três começaram a rir; um riso fanho, sufocado.
— Não é sonho, não detetive. Nós tavamos esperando você. Tamos todos aqui.
— Todos quem?
— Os que o senhor mandou pra cá, ora.
Dito isso, elas começaram a se afastar, voltando para as sombras até desaparecerem. Mauro sentia o coração aos pulos. Que porra é essa?, pensava, confuso e assustado. Com a mão sobre a pistola, saiu para o corredor que se abria a sua direita. Ali estava ainda mais escuro, não havia janelas, apenas uma série de portas. A primeira delas estava aberta e de lá, saia uma luz amarelada e um som conhecido.
Mauro parou a porta e contemplou seu parceiro Miguel, sentado numa poltrona surrada, diante de um aparelho de som antigo. O bolero de ConsueloVelasquez enchia o ambiente.
— Grande Teixeira! Os clássicos nunca morrem, não é? — disse Miguel, com uma pontada de ironia — Cê demorou, cara! Nós estamos esperando há um tempão.
— Miguel, que loucura é essa? Me esperando? Você está...
— Pois é, há um tempão. Mas deixa disso, relaxa, entra aí. Olha, preparei uma coisinha pra você — disse, acenando para a mesinha ao lado da poltrona; ali jaziam um copo de uísque e duas carreiras de pó branco.
— Miguel, eu não...
— Corta essa, Teixeira! Vai ficar só entre nós. Por acaso eu já falei sobre isso com alguém? Contei o que rolou, lá na Tijuca, quando os caras chegaram atirando e você tava doidão demais pra me dar cobertura? Cê foi homenageado, né? Recebeu até plaquinha por ato de bravura. E eu não levei seu segredo pro túmulo? Pode confiar em mim, cara.
Miguel levantou-se e empurrou Mauro levemente em direção à poltrona.
— Pronto, senta aí. Relaxa e curte seus pequenos prazeres — falou, afastando-se para a porta — Só não demora muito, porque tem mais gente esperando.
Quando Miguel virou-se, Mauro pode ver a parte de trás de sua cabeça, onde o tiro havia arrancado o couro cabeludo e um pedaço do crânio, deixando a mostra uma massa rosada coberta de sangue. Quis desviar o olhar, mas, então, Miguel já desaparecera no corredor. Mauro sorveu a bebida com um só gole, porém não tocou o pó. As coisas já estavam loucas demais para que ele embarcasse numa viagem.
Voltou para o corredor e caminhou até a porta seguinte. Era um quarto e estava vazio. Ele estava prestes a voltar, quando foi empurrado para dentro com safanão. Perdeu o equilíbrio e, na queda, acabou soltando a arma. Tentou recuperá-la, mas antes que pudesse fazê-lo, um pé enorme pisou sobre ela. Mauro ergueu o olhar e reconheceu de imediato o homem ao seu lado.
— Polaco — sussurrou.
— Olha só, se não é o policial fodão Mauro Teixeira! Se lembrou de mim, tô honrado.
Polaco agarrou Mauro, colocando-o em pé e ele pode ver o buraco na testa do homem. Seus dentes estavam manchados de vermelho e um fio de sangue escorria de sua boca.
— Então tu lembra da sacanagem escrota que tu armou pra mim, né? — vociferou Polaco — Tu foi lá de tarde, pegou tua parte, apertou minha mão, riu pra mim e disse que não tinha porra de operação nenhuma. Seu mentiroso de merda! Duas horas depois, cês tavam subindo o morro, quebrando tudo.
Polaco aproximou seu rosto do de Mauro e murmurou:
— Tu me olhou no olho, filho da puta, antes de atirar em mim.
Mauro foi lançado novamente ao chão. Alcançou a arma e, tremendo, mirou o peito de Polaco. O homem soltou uma gargalhada.
— Vai fazer o que, seu bosta? Me matar de novo? Fica frio, que teu passeio ainda não acabou — disse, acenando para o outro lado do quarto.
Então, Mauro viu o fantasma que o assombrava há anos: o garoto. Aquela era a imagem que perturbava seu sono, que o amedrontava quando o efeito da cocaína começava a passar. Era o menino que parecia espreitá-lo do escuro, com olhos cheios de terror. Revivera tantas vezes aquela morte: o pé na porta do barraco, o garoto franzino sentado no chão, o tiro, seu olhar se apagando. Foi a única vida que Mauro realmente se arrependeu de tirar. Ele temia aquele garoto, como jamais temera qualquer traficante ou assassino com quem lidara em seus anos como policial.
— Eu nunca tive medo de polícia — falou o garoto — Quem tem que ter medo de polícia é bandido.
Mauro caiu de joelhos diante do menino, chorando convulsivamente. Tentou falar, mas sentia um nó doloroso na garganta.
— Mesmo quando cê derrubou a porta do barraco e atirou no Neco, eu não tive medo da polícia. Eu achei que cê não era polícia, era bandido. Mas agora, tá tudo certo, tamos todos nós aqui. Cê entendeu? Todos estão aqui.
A voz do menino pareceu ecoar no quarto e Mauro percebeu que outras vozes se uniram a dele numa espécie de coro macabro.
— Todos aqui. Todos aqui — repetiam elas.
Mauro viu Polaco, Miguel, as prostitutas e outros tantos rostos, alguns conhecidos, outros não, todos repetindo aquelas palavras. Ele se encolheu, enquanto avançavam, comprimindo-o, sufocando-o. Quis gritar, mas já não tinha voz. Só se ouvia o ecoar daquela derradeira sentença: todos aqui.
*****
Lopes esfregava as mãos e, de tempos em tempos, soltava um suspiro. Conhecia Mauro há mais de quinze anos. Quando entrara para a Civil, o colega já servia lá. Conhecia também Andréia, a esposa, e era nela em quem pensava agora. Como contar que o marido passara mal num motel, na companhia de uma vagabunda? Não contaria. Teria que inventar alguma coisa. E o velho parecia que não ia se safar; estava mal mesmo. Porra, Teixeira!
Pela cara do médico, Lopes sabia que as notícias não eram boas.
— O quadro não é favorável. Aparentemente, ele sofreu um AVC e está em coma profundo. Acabamos de reverter uma parada cardíaca e não sei se ele resistirá a uma segunda. O estado dele é muito grave. Melhor ir preparando a família.
A frieza dos médicos era algo com a qual Lopes não se acostumava. Observou o homem de branco afastar-se e pensou: Ele acabou de me dizer que o Mauro já era. Pegou o celular e discou. Pouco antes de Andréia atender, exclamou em voz alta:
— Porra, Teixeira!
Sempre com a pitada de terror ao fundo! rsrsr Adorei!
ResponderExcluirbjosss
Pri
Nossa, fiquei tensa o tempo todo, Denise..parabéns pelo texto!
ResponderExcluirAdoro contos, as vezes me aventuro com essa modalidade no meu blog, também...
se tiver um tempinho dá uma olhada, ó:
http://invisivelnoreal.blogspot.com/2010/11/o-triste-fim-de-uma-historia-de-amor.html
http://invisivelnoreal.blogspot.com/2010/10/por-si-mesma.html
http://invisivelnoreal.blogspot.com/2010/10/por-si.html
http://invisivelnoreal.blogspot.com/2010/10/por-si_29.html
O primeiro link é um conto, os outros três são de outro - que foi publicado em três capítulos...
bjs!