"As pessoas me perguntam por que eu escrevo coisas tão brutas. Gosto de dizer que tenho um coração de menino; está guardado num vidro em cima da minha escrivaninha."

(Stephen King)



segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Dias Agridoces




Tomara que ela se esqueça. Tomara que ela se esqueça. Mas é claro que ela não se esqueceria. Minha mãe cumpria aquela rotina há tempo demais para se esquecer. Mesmo assim, eu me enrolei ainda mais no cobertor e abracei o travesseiro, esperando que, dessa vez, ela não viesse.
— Mila, hora de levantar.
Levante de uma vez e evite o sermão.
— Ah mãe, só hoje...
— De jeito nenhum. Pode ir levantando. Se não tivesse ficado até tarde assistindo à porcarias na TV, não estaria caindo de sono. 
São seis e meia. Eu estaria caindo de sono de qualquer forma.
— Não era porcaria, mãe. Era um documentário.
Sobre a evolução do rock, é verdade.
— Tá, documentário. Agora levante, senão seu pai vai acabar deixando-a pra trás.
Não vai, não. Vai ficar me infernizando, até eu ficar pronta.
Meu pai, como de costume, já havia terminado de tomar o café quando me sentei à mesa.
— Bom dia, dona Camila. Atrasada de novo?
Aquela pergunta também fazia parte do nosso ritual diário.
— No horário. Pai, você e a minha mãe já conversaram?
— Sobre?
O conflito árabe-israelense. Por que os pais têm essa mania de ficar enrolando a gente?

— Sobre arrumar um lugar pra eu ficar em Brasília. A gente tem que ver isso logo e vocês não se decidem...
— Hei, calma aí! Estamos vendo, sim. Só não acho que é preciso toda essa agonia. Vamos esperar o resultado do vestibular, certo?
— Ah, eu sabia! Sabia que vocês só iam me deixar ir  se eu passasse no maldito vestibular. O combinado não era isso, pai. Vocês disseram que eu iria fazer cursinho, caso não passasse.
— Mocinha, espere um instante. Eu não disse que você não vai, só falei que vamos esperar o resultado. Talvez, se você ficar aqui mais algum tempo...
— Aí, eu não disse?
— Chega, Camila! Não dá pra conversar com você. Quando começa com essa atitude defensiva, pode esquecer. Vamos, já estamos atrasados.
Era isso, a única forma de eu me livrar daquela cidade horrorosa seria entrando para a faculdade. A prova já havia sido feita, mas o resultado ainda demoraria algumas semanas. O pior era ter que continuar a ir à escola, apenas para concluir o ano letivo. Lugarzinho cheio de gente besta!
Naquela manhã, eu ainda receberia outras boas notícias.
— Vamos ter que ficar depois da aula para terminar o trabalho de Geografia — comunicou-me a insuportável da Luiza.
É claro, que fazer o trabalho com Luiza significava ter que agüentar mais que a companhia dela; sua corte de patricinhas anencéfalas nunca a abandonava.
— Eu li o capítulo quase todo. Só ficaram faltando umas páginas do final — comentou Luiza.
Quer dizer, leu as duas primeiras páginas, se encheu e largou de mão. Como sempre, fazer o trabalho ia sobrar para mim. A conversa das vassalas de Luiza sempre me incomodou, mas, naquele dia, ela estava especialmente irritante. A festa de despedida da turma se aproximava e o assunto eram os preparativos para ela. 
— ... mas você já foi comprar o vestido? Nós não tínhamos combinado de irmos juntas?
— Eu sei, amiga. Só que minha mãe disse que se eu não fosse com ela naquela hora não ia comprar vestido nenhum.
— E qual é a cor?
— Ah, não vou contar. Vai ser uma surpresa.
— Surpresa pra quem? Pro Leo?
Leo? O que o Leo tem a ver com esta estória?
— Quem sabe. Será que ele vai?
— Com certeza! Ai amiguinha torcendo tanto por vocês. Desde que vocês ficaram  na festa da Alê, que eu acho que vai rolar algo mais.
O Leo e a lambisgóia loura? Não é possível!
— E você vai, Mila?
— Hã? Eu? Pra festa?
Houve uma explosão de risadinhas e cochichos. Aquela era uma pergunta inesperada. Que espécie de interesse mórbido elas poderiam ter na resposta?
— Acho que não — respondi, sem tirar os olhos do livro.
— Por que não? Você tem que ir. É a última festa da turma.
E daí? Não fui a nenhuma das outras. Digo que vou pensar e mato o assunto.
— Talvez eu tenha outro compromisso.
NããããoHouve mais risadinhas. Malditas hienas!
— É mesmo? Que compromisso? — perguntou Luiza em tom de deboche.
— Um compromisso.
— Mila, você é uma pessoa estranha, sabia?
Sabia. É porque eu tenho cérebro. Coisa muito estranha pra vocês. Era a minha deixa. Juntei meu material para ir embora.
— Aonde você vai? Ficou chateada? — perguntou Luiza.
— Não. Vou terminar o trabalho em casa.
— Mas tem que ser feito em dupla.
— Estou fazendo sozinha de qualquer forma. Não se preocupe, ponho seu nome.
Luiza pareceu aliviada e se uniu às outras meninas para mais uma série de sussurros e risinhos. Danem-se!
Luiza me irritava, seu bando de bajuladoras me irritava, fazer trabalho sozinha me irritava, mas não fora nada disso que me tirara do sério. O problema era Leo. Besta! Para revisar a matéria de Física, estudar Matemática, discutir resenhas de Literatura eu sirvo, mas,  para ficar na festa, ele prefere a retardada da Fabi. Era isso. Mais do que nunca, eu queria ir embora daquele lugarejo atrasado e, para tanto, só faltava um pequeno detalhe: passar no vestibular.
Dizem que os jovens têm pressa, mas, na realidade, o tempo é que passa devagar. As semanas anteriores ao resultado se arrastaram e a manhã daquele dia tão esperado durou uma eternidade. O problema era que o jornal da capital só chegava à minha cidade após o meio-dia. A lista de aprovados era uma coisa enorme. Adriano... Bárbara... Caio... Camila... Camila... Camila Veloso. Caracas, não acredito! Passei! O sentimento era um misto de euforia, felicidade e pânico. Eu ia me livrar daquele fim de mundo, sair do controle dos meus pais, morar sozinha. Eu já era praticamente uma universitária.
A reação dos meus velhos foi a esperada: meu pai me abraçou orgulhoso e minha mãe se agarrou a mim chorosa. Começaram então a planejar; havia tanto para ser feito antes de minha mudança. Eu disse que deviam ter se organizado antes. Deixei para eles as questões práticas, como moradia e dinheiro. Afinal, solucionar esse tipo de problema é função dos pais; eu já havia feito minha parte.
O dia da festa também chegou. Já passava das nove da noite e minha mãe ainda não havia desistido de tentar me convencer a ir.
— Por que não, Mila? É a sua última chance de estar com seus colegas.
Mãe, há pelo menos dois anos, eu já não queria estar com eles.
— Porque eu não ia me sentir bem lá, mãe.
— Mila, você é uma pessoa estranha, sabia?
Muita gente diz isso.
— Me deixe aqui quietinha, curtindo meu som... Só não quero me estressar, tá bom?
— Você está ouvindo esta porcaria de novo, ? Eu não falei que não gosto que você ouça isso?
Sim, desde que assistiu Christiane F e Bowie se tornou o anti-cristo.
— Não se preocupe. Já tenho dezesseis anos e não sou drogada, nem prostituta.
Como se eu tivesse privacidade suficiente nesta casa para me drogar, ou nesta cidade para me prostituir.
— Olha, Mila, às vezes você é insuportável!
Aquilo encerrou a conversa, o que fez o desaforo valer à pena. Custo-benefício, minha cara. Quando ela voltou, uma hora mais tarde, pensei que faria um drama sobre como estava magoada, mas, ao invés disso, veio me avisar, toda animada, que havia um garoto me chamando no portão.
Garotos no meu portão não era coisa corriqueira, mas surpresa mesmo foi ver Leo ali, todo arrumadinho. Lindo. Meu coração disparou e minhas pernas pareceram pesadas demais. Como está meu cabelo?
— Oi, Leo! Pensei que você estava na festa.
— Eu estive lá, mas quer saber? Você não está perdendo nada. Aquilo tá uma chatice!
— É mesmo? Mas e a Fabi?
— O que tem a Fabi — perguntou ele confuso.
Cale a boca, Mila!
— Nada. Bobagem minha.
— Sabe, Mila, estava pensando no que você falou outro dia. Acho que também me cansei desta vidinha sem graça. Ao menos você vai escapar disto aqui, ?
— Pois é, vou. E você, vai fazer o que agora?
— Bom, meus pais estão decidindo se me mandam ou não para fazer cursinho em Brasília. Estão conversando sobre isso... Quem sabe?
Os pais e suas intermináveis conversas. Sempre enrolando a gente.
— Você devia ir, se esforçou pra caramba neste último ano.
— Foi mesmo, ? — disse ele sorrindo — Vou sentir saudades dos nossos estudos.
— Eu também.
— Bem, só passei porque senti sua falta na festa.
Ele sentiu minha falta! Queria ver a cara da Fabi.
Leo então passou o braço ao redor da minha cintura e me puxou para junto dele. Eu estava meio tonta com seu perfume e quando ele aproximou seu rosto do meu, senti um arrepio pelo corpo todo.Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Quando ele me beijou, eu soube que me lembraria daquele beijo para sempre.
— Eu quis fazer isto o ano todo.
E por que demorou tanto?
— Ainda bem que fez — sussurrei.
— Vai ser algo mais para eu sentir saudade, quando pensar em você.
Ficamos ali abraçados por mais alguns minutos, antes dele me beijar outra vez e se despedir. Eu estava entre o imensamente feliz e o profundamente triste. Aquele havia sido um beijo de adeus. A vida era melancolicamente doce naquele momento.
Os dias que se seguiram não foram bem o que eu esperava. Encaixotar minhas coisas, ver as prateleiras do meu quarto e o armário quase vazios foi meio deprimente. Percebi que teria que deixar muitas coisas, algumas, para sempre.
Mas o pior de tudo era o medo, a sensação de que a tão sonhada liberdade podia ser assustadora. Quem cuidaria para que eu me levantasse no horário e não me atrasasse? Quem reclamaria da música alta? Quem garantiria que eu estudasse na época das provas? Quem cuidaria das coisas práticas como roupa, comida e compras? Dali por diante, não haveria ninguém a quem culpar; eu teria que me resolver sozinha. Sozinha. Eu estaria só pela primeira vez.
De repente, a idéia de ficar ali por mais algum tempo não me pareceu tão terrível. Talvez eu pudesse prestar vestibular novamente dali a seis meses; não seria nada demais. Já não tinha certeza de que o curso para o qual havia passado era mesmo uma boa opção. Eu poderia tentar Direito, o sonho de minha mãe, e ficaríamos todos felizes. Eu não estou pronta, não posso sair de casa ainda. Teria que convencer meus pais. Não seria fácil, não depois de ter insistido tanto para me deixarem ir, mas depois do mal-estar inicial, tudo ficaria bem. Não se iluda, é tarde demais!
O telefone começou a tocar na sala e fui atendê-lo com a costumeira má vontade. A surpresa de ouvir a voz animada de Leo do outro lado  quase me fez perder a fala.
— Alô! Mila?
— Oi, Leo, tudo bem?
— Tudo ótimo. Fiquei com medo de você já ter ido. Não era hoje?
— Não, vou amanhã.
Isso ainda não está decidido.
— Escuta só, meu pai decidiu pagar o cursinho. Eu também vou pra Brasília, Mila. Queria saber o telefone de onde você vai morar. Daí, quando eu arrumar um canto pra mim, eu ligo para a gente combinar de se encontrar. Pode ser?
— Mas é claro! Espere só um pouquinho  que vou pegar o número com a minha mãe, tá?
— Beleza.
Eu não podia acreditar, o Leo e eu em Brasília. Havia algo que eu queria discutir com meus pais, pouco antes daquele telefonema, mas agora isso era passado, não importava. A vida voltara a ser boa.Adeus, cafundó do Judas! Estou indo para a Capital. 

3 comentários:

  1. Simples mas muito gostoso de ler!! Como sempre, adorei!
    Mas sabia que eu fiquei imaginando você nessa situação, há alguns anos atrás??? rsrsrs será que não foi? Camila Veloso... será Denise Gonsalez??

    Beijos amiga!!!

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  2. Oi Denise,

    adorei! Você prende a atenção de uma forma tão leve.
    Parabéns!

    Um abraço!

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  3. Oi Denise,

    Não sei se é fluxo de consciência ou não, mas que eu gostei muito isso não dá para se discutir.

    Parabéns!!

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